segunda-feira, fevereiro 02, 2004

A Realidade Ficcional e a Ficção do Real: Close-up, um filme de Abbas Kiarostami.

por Guilherme Alves

Trecho 1 Kiarostami: Nós queremos fazer um filme sobre o processo. Temos o seu consentimento?
Sabzian: Sim.
Kiarostami: Não se opõe?
Sabzian: Não. Vocês são meu público.
Kiarostami: O quê?
Sabzian: Vocês são meu público.
Kiarostami: Quem é seu público?
Sabzian: Vocês.
Kiarostami: Por que diz isso?
Sabzian: Por causa do meu interesse...
Kiarostami: Em quê?
Sabzian: Na atividade artística... cinema.

***

Trecho 2 "...E quando eu estou deprimido ou dominado pelos problemas, sinto uma grande necessidade de proclamar a angústia de minha alma, as tristes experiências da vida sobre as quais ninguém quer ouvir. E então, eu encontrei um homem bom [nota: referência ao diretor Mohsen Makhmalbaf]. E ele mostrou todo o meu sofrimento em seus filmes e me fez querer assistir a esses filmes mais e mais vezes. [...] Ele fala a respeito de coisas das quais eu teria gostado de falar. Ele expõe o meu pensamento. É por isso que é um consolo para mim." (Hossain Sabzian)

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Close-up nos revela um indivíduo sendo julgado e tentando desfazer a impressão de trapaceiro associada a sua pessoa após personificar, perante uma família, o diretor iraniano Mohsen Makhmalbaf. O diretor do filme, Abbas Kiarostami, tenta compreender aquele ser não só sociologicamente (mesmo focalizando, aqui e ali, sua vida pessoal conturbada, juventude pobre etc.) mas também sob as lentes humanistas, cinematográficas. Talvez a situação narrada já mostre a devoção que Sabzian nutre quanto ao cinema, a arte da representação (com os dois pontos de vista: atuação e direção - ele "atua" como um diretor), da fantasia, da ficção real e da realidade ficcional. Ele se faz passar pelo diretor porque somente assim suas idéias são levadas em consideração, ganhando o status que almeja. A partir do momento em que ele interage com a família, vítima do "golpe", os ouvidos de todos se abrem para o mesmo, sua forma de pensar é vista (cinematograficamente) com olhos receptivos, amigáveis. Sua noção do dirigir um filme foi aprendida em livros de bolso e idas ao cinema, para assistir muitas vezes ao mesmo filme (ele cita O Ciclista, de Makhmalbaf, como "sua vida"). Os produções iranianas contemplam a figura humana em sua plenitude, desejos e anseios. Sabzian vê a representação de sua pessoa na tela e portanto quer aprender o ofício como forma de visualizar o domínio completo de sua alma. É, basicamente, um uso terapêutico da Sétima Arte. O interesse daquela rica família iraniana pelas suas divagações a respeito de filmar dentro da residência deles (inclusive pedindo para que árvores fossem cortadas, a fim de obter - pelo ângulo escolhido por ele - uma tomada da fachada da casa) e de seu amor pelo cinema, contato freqüente com a natureza, idéias para a produção (uma carteira perdida seria o início de uma amizade entre dois desconhecidos, assim como um peixinho dourado em O Balão Branco de Panahi) o fazia sentir-se participante do mundo, ele teria chances de se engajar com a sua história de privações a partir do financiamento do filme proposto pela família.

Kiarostami filma o julgamento de Sabzian como se o réu estivesse confessando que suas atitudes foram de encontro à lei mas que também justificasse que a lei que seguiu foi a sua, pessoal. Segundo Sabzian, não há como compreender suas atitudes sem que o ouvinte tenha uma bagagem intelectual/cinematográfica como a dele. A paixão pela sala escura "enobrece" seus atos a medida em que não possibilita uma penetração moral de quem não se identifica com filmes [ver trecho 1]. O embate entre os campos da comunidade (que o consideram um impostor, vigarista com segundas intenções - representado pela câmera que filma a audiência por completo) e o individual (Kiarostami e seu interesse pelo caso de Sabzian - representado pela câmera com a lente close-up) tomam lugar no tribunal. A inserção de dramas pessoais no contraponto ao ato que lesou a família ilumina o filme e, sua investigação na negação do aceitar o que foi imposto, ganha contornos surpreendentes. Não existe nenhum recurso manipulativo por parte de Kiarostami, até mesmo o uso recorrente do close-up fornece subsídios para que observemos a vertente humanista do ocorrido.

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Logo nas primeiras cenas do filme observamos um jornalista e dois policiais em um táxi. Esse jornalista está se dirigindo à casa da família lesada para registrar com fotos a prisão de Sabzian. A perspectiva de Sabzian em relação à chegada deles ao local é apresentada como um dos entre-cortes da seqüência do julgamento (assim como o é o encontro entre ele e a matriarca no ônibus). Close-up apresenta uma narrativa não-linear decorrente da necessidade que o filme apresenta de observar os dois lados dos fatos (por exemplo: na cena da prisão, o jornalista disseca sobre o que levaria um homem a fazer isso e logo pensa no furto como alternativa plausível, enquanto isso, o impostor sente que a descoberta será iminente mas não consegue se ver livre do fascínio proporcionado pela convivência com a família, por isso volta à casa deles, mesmo sob risco imediato) sem pesar a balança para nenhum deles. No início do julgamento, ficamos ressabiados quanto às intenções do falso Makhmalbaf, assim como o núcleo familiar, ávido por descobrir o motivo da falcatrua. Evidências, confirmações e reticências, evidenciam que não há somente uma pessoas ali capaz de se defender das acusações mas sim, criar toda uma atmosfera do seu cotidiano sofrido e tentar encaixá-la em seu discurso. Os membros familiares vão cada vez mais percebendo que a porção traiçoeira aplicada a ele é apenas uma de outras tantas. E que essa dualidade compreende qualquer ser, digno de perdão, portanto.

É interessante notar que as cenas passadas no tribunal são (provavelmente, o filme não esclarece nada) verdadeiras, com estética documental envolvida (assim como o encontro final e ver trecho 1); e que as seqüências da prisão de Sabzian (as duas visões), o encontro no ônibus ou qualquer uma entre o impostor e a família, são ficcionais, recriações do real. Sua simulação é retratada pela subjetividade da encenação, não há uma verdade concreta sobre o que aconteceu; já, a parte documental do filme é a que disseca realmente o ser e o interroga. Kiarostami pega nossas referências e as transforma em termos didáticos e inúteis. A ficção se mistura com a realidade e o real se difunde na ficção (a reconstrução do caso verídico a partir de informações e depoimentos pessoais, ou seja, ótica subjetiva na criação da verdade - ou melhor, parte dela) e os minutos finais exemplificam isso muito bem.

O encontro final entre Sabzian e Makhmalbaf é algo tão adorável e forte que fazer um paralelo com o de Bogart & Bergman no clássico Casablanca não seria despropositado. Se eu estivesse nas filmagens da cena da florista reconhecendo seu bem-feitor em Luzes da Cidade ou passeasse pela estrada que corta os campos de grãos de História Real, ficaria submerso em uma realidade paralela, nunca vivenciada por mim mas de alguma forma já existente na minha essência. Sabzian não tem palavras para ofertar ao seu ídolo. Ali está a materialização dele próprio; suas experiências de vida e tristezas são compartilhadas com aquele homem que ele nunca viu na vida mas que sabe expressar, até com mais veemência que o mesmo, suas necessidades e aspirações [ver trecho 2]. O freeze frame final induz uma idéia de "estaticidade positiva", o recurso coroa a benevolência e a capacidade do homem de se reinventar com seus recursos a fim de atingir suas metas. A recepção do sorriso e perdão pelo patriarca o envolve com um vigor único de satisfação e auto-estima renovada. Anteriormente, em um dos flashbacks, Sabzian convence a família a assistir O Ciclista com ele, o "diretor" do filme - o seu motivo, expresso durante um questionamento do juiz, é: "Eu queria que eles aprendessem a apreciar o cinema".

***

Quando Kiarostami tenta persuadir o juiz para que o deixe filmar a audiência de Sabzian, ele replica: "Esse caso não tem nada de interessante o bastante para um filme." Está aí, o diálogo mais ingênuo e essencialmente errado de todos os tempos.


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