sexta-feira, setembro 07, 2007

SETEMBRO & OUTUBRO (adicionados: /MEDOS PRIVADOS EM LUGARES PÚBLICOS/ etc.)

178. (01 set) MS .45 (Abel Ferrara, 1981) 75

179. (02 set) A GUIDE TO RECOGNIZING YOUR SAINTS (Dito Montiel, 2006) 65

180. (07 set) 49 UP (Michael Apted, 2005) 72

181. (07 set) /A SOMBRA DE UMA DÚVIDA/ (Alfred Hitchcock, 1943) 77

182. (08 set) BADLANDS (Terrence Malick, 1973) 90

183. (10 set) FORA DE JOGO (Jafar Panahi, 2006)* 67

184. (10 set) SANEAMENTO BÁSICO - O FILME (Jorge Furtado, 2007)* 55

c28. (13 set) A PASSARELA SE FOI (Tsai Ming-liang, 2002) 62

c29. (18 set) VEREDA TROPICAL (Joaquim Pedro de Andrade, 1977) 67


185. (19 set) OS ANJOS EXTERMINADORES (Jean-Claude Brisseau, 2006)* 57

186. (20 set) JESUS NO MUNDO MARAVILHA (Newton Cannito, 2007) 18

187. (21 set) THE SCIENCE OF SLEEP (Michel Gondry, 2006)* 72

188. (21 set) À PROVA DE MORTE (Quentin Tarantino, 2007)* 76

189. (21 set) UMA MOÇA DIVIDIDA EM DUAS (Claude Chabrol, 2007)* 37

190. (22 set) LUZ SILENCIOSA (Carlos Reygadas, 2007)* 84

191. (22 set) MADRIGAL (Fernando Pérez, 2006)* 44

192. (22 set) DAS FRÄULEIN (Andrea Stacka, 2006)* 47

193. (22 set) MARRIED LIFE (Ira Sachs, 2007)* 58

194. (23 set) HALLAM FOE (David Mackenzie, 2007)* 60

195. (23 set) SÍNDROMES E UM SÉCULO (Apichatpong Weerasethakul, 2006)* 77

196. (23 set) ELVIS PELVIS (Kevin Aduaka, 2007)* 27

197. (23 set) /SÍNDROMES E UM SÉCULO/ (Apichatpong Weerasethakul, 2006)* 81

198. (25 set) MULHER NA PRAIA (Hong Sang-soo, 2006)* 74

199. (25 set) DARATT (Mahamat-Saleh Haroun, 2006)* 48

200. (25 set) O ESTADO DO MUNDO (Apichatpong Weerasethakul, Vicente Ferraz, Ayisha Abraham, Pedro Costa, Wang Bing, Chantal Akerman, 2007)* 33

201. (26 set) SEM FÔLEGO (Kim Ki-duk, 2007)* 11

202. (26 set) EU NÃO QUERO DORMIR SOZINHO (Tsai Ming-liang, 2006)* 44

203. (28 set) ANTES QUE EU ESQUEÇA (Jacques Nolot, 2007)* 51

204. (28 set) CRISTÓVAO COLOMBO: O ENIGMA (Manoel de Oliveira, 2007)* 52

205. (29 set) A FLORESTA DOS LAMENTOS (Naomi Kawase, 2007)* 68

206. (29 set) LADY CHATTERLEY (Pascale Ferran, 2006)* 73

207. (29 set) PARANOID PARK (Gus Van Sant, 2007)* 77

208. (30 set) COCHOCHI (Israel Cárdenas e Laura Amelia Guzmán, 2007)* 42

209. (30 set) UMA VELHA AMANTE (Catherine Breillat, 2007)* 68

210. (01 set) I'M NOT THERE (Todd Haynes, 2007)* 64 [agudo zzz]

211. (01 out) MY KID COULD PAINT THAT (Amir Bar-Lev, 2007)* 63

212. (02 out) NINFÉIAS (Céline Sciamma, 2007)* 70

213. (02 out) SMILEY FACE (Gregg Araki, 2007)* 65

214. (03 out) GO GO TALES (Abel Ferrara, 2007)* 53

215. (03 out) UM TÁXI PARA A ESCURIDÃO (Alex Gibney, 2007)* 61

216. (08 out) NÃO TOQUE NO MACHADO (Jacques Rivette, 2007)* 61

217. (11 out) PAPEL NÃO EMBRULHA BRASAS (Rithy Panh, 2007)* 62

218. (20 out) /MEDOS PRIVADOS EM LUGARES PÚBLICOS/ (Alain Resnais, 2006)* 73 [antes, 67]

219. (25 out) SUPERBAD (Greg Mottola, 2007)* 56

220. (27 out) ESBOÇOS PARA FRANK GEHRY (Sydney Pollack, 2005) 53

221. (27 out) /BOTTLE ROCKET/ (Wes Anderson, 1996) 66

222. (31 out) FAST FOOD NATION (Richard Linklater, 2006)* 37




domingo, setembro 02, 2007

sim, é o fim de uma era: largado confortavelmente pelos três anos de direito e pelas poltronas dos cinemas da cidade, o mundo, das costas, rumava para a palma da mão. sendo assim, quem iria pensar que eu encontraria bálsamos, bolsas, bicos e vale-transporte ligando um ponto ao outro em uma teoricamente desorganizada, faça-você-mesmo faculdade de comunicação? talvez por isso seja excepcionalmente estranho que eu tenha sido apresentado ao paissandu, berço e colo da cinefilia de um rio de amor que se perdeu, justamente quando eu me afasto dessas luzes. elegi prioridades e, com novas opções assinaladas, pouco sobra. entrei em um estimado cineclube e participarei de um workshop de crítica encabeçado por uns nomes da contracampo, o que, talvez, me dê uma inestimável oportunidade de cobrir o festival curta cinema.

neste período de entresafra, já semeado com a extravagância de abel ferrara em MS. .45 e futuramente repleto de gemas obscuras, cortesias do festival do rio, achei por bem publicar dois textos. o primeiro é um apanhado geral da filmografia do domingos de oliveira. foi escrito para um jornalzinho do cinerama (o cineclube mencionado) na ocasião da visita do diretor às dependências (beto brant, cláudio assis e jorge durán já vieram para debates). o segundo, comentário para VINIL VERDE, notável curta do chefe do cinemascópio, me valeu a vaga na tal oficina.


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DOMINGOS DE OLIVEIRA

"O homem lúcido sabe que a vida é uma carga tamanha de acontecimentos e emoções que ele nunca se entusiasma com ela, assim como não teme a morte."

O trecho acima pertence ao texto de encerramento de Separações (2001). Domingos de Oliveira tem suas memórias. Lembra, e lembra de tudo. Todas as Mulheres do Mundo (1966) preserva intacto o arquétipo seminal de sua dimensão romântica. A primeira fita do diretor é um filme-testamento, ou melhor, um filme-herança: sumário de suas habilidades ao jogar luz sobre uma trupe de personagens adoráveis que coloca todos os filmes subseqüentes em perspectiva. Paulo José termina a ciranda amorosa com sua musa olimpiana e quem se atreve a emitir um pio frente a essa linda retificação histórica que Oliveira empreende, a de corrigir o término de seu relacionamento real com Leila Diniz?

O Domingos de Oliveira dos anos 60 encontrava-se empacado na encruzilhada da conquista, do galanteio sedutor, da escolha por uma mulher que possivelmente tiraria da disputa todas as outras. Suas mãos, entretanto, não estavam atadas e ele fez malabarismos com a liberdade juvenil sessentista, o amor livre e sem amarras ("Nunca penso na vida", diz Edu com seu coração de ouro) e a acomodação pequeno-burguesa dessa galeria aos padrões e hierarquias vigentes. Décadas depois, o despojamento continua presente e o que muda são os pitacos polidos arremessados a um estilo de vida já estabelecido: o dos artistas em rodinhas de bate-papo percorrendo suas trajetórias etílicas, e tudo o que existir nos intervalos dessas sessões. Os preceitos do BOAA (Baixo Orçamento e Alto Astral) são seguidos mais por convicção que por efeito: o alto astral é abundante, Oliveira claramente adora sua vida e seus personagens (de sua vida) e o baixo orçamento vem sob a forma da filmagem em digital, que acomoda com segurança sua vontade de reunir os amigos diante das câmeras sem se ater aos resultados de editais de incentivo à produção cinematográfica nacional.

Os conflitos, nos filmes de Domingos de Oliveira, são tratados com a irreverência e a espontaneidade que merecem. A palavra é dada às mulheres de 40 anos para que façam suas confissões em Feminices (2004), mas Oliveira ama a todas, as de 20, 30, e 50 também. Seus filmes apresentam uma torrente de acontecimentos e emoções, os quais, de fato, entusiasmam. A abordagem gente-como-a-gente traz em seu bojo a ilusória facilidade de destrinchar e esmiuçar comportamentos. Oliveira poderia qualificá-los como meras tendências. No entanto, ele não se envereda por essa trilha, preferindo auscultar as neuroses de seus personagens com a vivência dos que respiram para fazer filmes e a teatralidade, que exporta dos palcos para as telas filmes como Amores (1998) e Separações.

Domingos de Oliveira confere à classe média a visibilidade que ela não encontra no cinema e desnuda as personas de seu círculo mais íntimo. Escreve cartas de amor para a Zona Sul carioca como Woody Allen escreve seus poemas para Manhattan. E, no entanto, sua sensibilidade é bem mais próxima do falatório descompensado e da necessidade vital de Eric Rohmer em testemunhar seus atores orbitando em torno de seus sentimentos e, também, das recorrências ao amour fou e à poesia desajeitada de François Truffaut. O triunfo de Oliveira reside justamente no modo com que suas obras apreendem e circulam por seu mundo e tentam fazer o melhor possível com ele.

Cabral, protagonista de Separações, profere, a certo momento, que "a liberdade não é seguir impulsos, mas escolhas". Tal dispositivo não é corriqueiro: os filmes do diretor são praticamente desprovidos de conclusões que não sigam o padrão de máximas e tiradas woodyalleanas. Estão livres e impunes para existir, não acomodando seus personagens em narrativas redondas e reconfortantes. O que reconforta nos filmes de Domingos de Oliveira é a desmedida atenção aos gestos e palavras tão íntimos e particulares aos espectadores. Mais do que o interesse por suas pessoas que desfilam na tela, o que causa deslumbramento é saber que ele poderia pegar nossas vidas mundanas e colocá-las ao olho público. Eu, você e todos nós encontramos uma faixa de areia ensolarada no seu egocentrismo.


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Vinil Verde (Kleber Mendonça Filho, 2004)

"Era uma vez a história de Mãe e Filha". Em um mundo gentilmente estilizado, do "espetáculo" que é assistir ao despertar da Filha todas as manhãs e de presentes especiais entregues em um dia qualquer, as denominações Mãe e Filha bastam para o narrador. O status é inerentemente universal. Vinil Verde é composto por fotografias e Kleber Mendonça Filho olha, no futuro, o passado com os olhos do presente. A cada espectador é permitido o mesmo movimento. Vemos estilhaços de um projeto de construção conjunta. A foto é memória que não está pautada pela memória vivenciada, e, assim, disquinhos coloridos com músicas infantis interessam a cada um de nós, assim como exercem poderosa atração sobre a Filha. "Nós somos as luvas verdes. A gente vem te pegar", revela o proibido vinil verde. A ameaça pouco importa perante a voz rouca e cautelosa do narrador: "Juntas, começaram um novo dia". A figura da Mãe é desconstruída passo a passo. No intervalo, repetidos closes nas bonecas da menina. Inteiras.

A atenção de Kleber Mendonça aos detalhes é impecável. A menina leva suas mãos aos ouvidos e quando se espera que tal ato seja ocasionado para apaziguar demônios internos somos confrontados com a aspereza da comoção com a vida moderna: crentes cantando na igreja ao lado de casa a incomodam. Existe um mundo lá fora. O narrador nos oferece a posição geográfica do edifício e nos convida a observar, em duas fotos, o horizonte arborizado da janela do quarto da garota e o muro que separa o público do privado. O intercâmbio entre estas esferas só não é mais patente porque os duelos serenos de Mãe e Filha fixas são privilegiados com afinco.

Nesse conto de medos infantis e mistérios insolúveis, um bem-vindo pé na realidade prática extravasa todo o talento de Kleber Mendonça para encenar o cotidiano com progressão em eixos temáticos. Os eletrodomésticos deterministas de Eletrodomésticas (2005) são substituídos pela insistência de Vinil Verde em se estruturar por meio de movimentos contínuos. Dentre os detalhes prosaicos encantadores, são destaques os repetidos dias de sol, provendo a luminosidade que desperta a menina; o cafuné como cortesia e camaradagem e a mesa do café da manhã como possibilidade inestimável de conversa das duas. Mesmo a saída e chegada da Mãe do trabalho para casa é o vai-e-vem que encompassa as expectativas da menina, livre para existir em casa, e as nossas, a de testemunhar novos membros misteriosamente subtraídos do corpo da Mãe.

O espaço para traquinagens existe. A menina brinca com suas bonecas, mas o espectador observa a tudo antes, com a disposição destas, imóveis, em uma prateleira. Por que uma fotografia como a menina repousando no chão e criando um "L" na interseção deste com a parede nos traria de forma tão vívida um sentimento de acolhida e pertencimento? Que a garota escute, de fato, o disco verde, mesmo com a proibição enfática da Mãe reverberando, adiciona um saudável conflito geracional. A Filha adora se pintar como sua Mãe, suas visitas secretas ao estojo de maquiagem e, segundo o narrador, sua predileção pela "aparência alterada de uma mulher", insinuam contornos freudianos, ratificados ainda em uma outra intervenção do narrador, "Filha se sente um pouco Mãe", quando a primeira oferece um biscoito para a última. O complexo é o de Édipo e a caixa que abriga os disquinhos é a de Pandora. No enterro da mãe, a menina se pergunta se ela estaria confortável em um caixão tão pequenino que facilmente a poderia abrigar. Logo depois, volta para casa sentada no banco de trás, como se estivesse sendo conduzida. Pede para parar em um supermercado. Mater familias: seu lar é seu domínio.

"A vida é perene como a infância" e Kleber Mendonça está realmente de acordo. A menina finalmente adquire um trauma que só completa seu ciclo quando ela repassa o disco verde para seus filhos. Uma doce profecia, fábula afetuosa e exuberante que não tarda a surgir quando testemunhamos, em um mesmo plano, traquinagens joviais e crueza tétrica. A exuberância de Vinil Verde reside nas fotografias que não entraram na montagem final. Este é um curta-metragem que pensa a ausência e espelha no espectador suas expectativas de concretude. Assim, estamos diante de um álbum de fotografias de terceiros. O espectador, ao forjar um elo entre uma foto e a próxima, ou ao criar diversas outras complementares, mentalmente, apenas comprova a generosidade de um curta que se dispõe a retribuir aos incautos a comoção que deles tira.