sábado, fevereiro 14, 2004

060. (13 Fev) A Idade do Ouro (L'âge D'or, Luis Buñuel, 1930 | vídeo, Continental, 60' | *)

"Um Cão Andaluz e A Idade do Ouro são definitivamente criações surrealistas, onde a consciência política se entremescla com o devaneio onírico e as imagens se esforçam em romper seus vínculos com a realidade para melhor criticá-la através de um contínuo estranhamento." (Nelson Ascher, Luis Buñuel e seus Demônios, Folha Conta 100 Anos de Cinema)


Um Cão Andaluz é um curta delicioso, vigoroso, com idéias fascinantes. Estava esperando algo completamente non-sense, mas a lógica da história do amor louco e suas ramificações bizarras fazem algum sentido de uma forma igualmente estranha. O que me fez ficar viciado (vi 6 vezes) é a velocidade que é imprimida a tudo (carícia dos seios com a roupa cobrindo-os - sem roupa - nádegas), os cortes rápidos, especialmente nas transições que mudam o ambiente circundante rapidamente (axilas - pedra - mão) mas acima de tudo o inesperado, a quebra de expectativas. O melhor exemplo para isso é a badaladíssima cena inicial: o protagonista abre os olhos da mulher /corta/ a nuvem "perfura" a Lua /corta/ ...e quando eu, incauto espectador, pensei que Buñuel não iria mostrar o ato de fato - já que a nuvem e a Lua o representaria indiretamente -... boom, ledo engano = brilhante. Apresenta também uma seqüência com padres amarrados à dois pianos com animais mortos em cima: religião ridicularizada, l'enfant terrible já atacava no primeiro filme, precoce e determinado, não? O maior elogio que se pode fazer à produção é que ele destroça perfeitamente qualquer convenção narrativa.

As expectativas estavam altas para A Idade do Ouro. Pensei ser uma versão esticada de Cão (duração quatro vezes maior) só que menos veloz, mais ciente do que diabos Buñuel quer dizer mesmo com todo o tom surreal do anterior. Primeiro banho de água fria: a cópia da Continental está deplorável, abominável, impronunciável etc., melhor não vê-lo nessas condições, confiem em mim. Segundo banho: a energia de Cão deu espaço para cenas gratuitas (Jesus participando de uma orgia - vejam! vejam! - padre e girafa jogados pela janela - observem! observem! - pai matando um filho - não percam! - mulher lambendo os dedos do pé de uma estátua grega - oh, que ousado! Buñuel safadinho!) e um fio narrativo, digamos, convencional, mesmo com toda a profusão de seqüências nada convencionais como as de cima. É uma louca love story (bem como Cão, mas lá existem outros aspectos se chocando e isso pode ser [e é] apenas uma parte de tudo), com os amantes sendo interrompidos na consumação do desejo sexual (algo como o plot de O Discreto Charme da Burguesia trocando comida por sexo). O grande charme de Cão era o não estabelecimento de fronteiras entre o real e o imaginário e a criação de cenas que mudavam o tom e motivações dos participantes em segundos pulando de sonho para realidade; Ouro não tem essa condição de deslocamento (porque os atos surreais dos personagens são derivados de comportamentos demarcadores sociais; então motivos são expostos, o fluxo de consciência entre o não saber/não se importar com o que se está fazendo desaparece, ganhando ares propositais e o conseqüente "choque pelo choque" surge = determinismo ingênuo) e as usuais (e devo dizer, cansativas) críticas à censura - presente nos atos controlados da nobreza e no relativo rigor do clero - das vontades indôminas humanas apenas salientam a histeria da coisa toda. A estrelinha solitária está ali devido a uma quebra de expectativas (muito parecido, nesse sentido, com Cão), afinal quem esperaria um documentário sobre escorpiões, depois observações sobre Roma (e o Vaticano, óbvio - achavam que Buñuel iria deixar passar?) e insights em uma festa da aristocracia em uma hora de filme? Um desafio à coerência. Mas nem por isso minimamente decente.



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