domingo, junho 27, 2004

Anotações descoordenadas sobre o deslumbrante documentário Ser e Ter (resumidamente: um ano na vida de um professor e de seus alunos do ensino fundamental e maternal em uma escola provinciana francesa de turma única):


1 = um) Existe algo de mágico na maneira como o diretor Nicolas Philibert se dirige ao seu, literalmente, ambiente de estudo: um esmero incalculável na obtenção das mais diversas reações quando homens e mulheres em miniatura recebem pequenas recompensas e castigos; um dinamismo que coloca em perspectiva relativizada o encaixe dos pequenos em alguma estrutura social planejada (noção de hierarquia abstrata = tratamento civilizado e respeitoso ao professor e demais colegas, tolerância, cooperação e camaradagem); e além de tudo, revelar momentos quase cruciais na vida da comunidade, aqueles nos quais a sensação é a de "estou preparado. Mas para o quê exatamente?" (exemplo marcante: a transição do ensino fundamental para o médio como forma de deslocamento do ambiente caloroso para outro que os forçará a tomar decisões com maior ressonância e a lidar com suas fraquezas com cabeça erguida [dificuldades na socialização é recorrente], sem a figura distintivamente mediadora do professor antigo). Em alguns momentos minha 'memória afetiva' irrompeu bruscamente a projeção: dificuldades para se comunicar (eu: fonoaudiologia no primário; interação precária com os demais); memorização falha, mesmo se tratando de repetições sucessivas ao dito dois segundos atrás; laços professor/aluno (as inesquecíveis 'tias', excetuando o grau de parentesco) etc.


2 = 1 + 1 = dois) Fascinante é especialmente a figura do professor: central, rigorosa e maleável, gentil persistência misturada com um leve autoritarismo, busca o conhecimento alheio no equilíbrio entre o indivíduo e o externo, na opinião própria que pode contestar ou aceitar os parâmetros de outro colega. Seu mantra é: "Você é esperto o suficiente para resolver isto." e o grande trunfo conquistado é o de incentivar a auto-confiança desses recém-formados indivíduos para suas habilidades que estão despontando aos poucos. Quando uma menininha lhe diz que quer ser professora quando crescer, ele aproveita esse 'material' e começa a criar condições para o desenvolvimento desse senso de futuro próximo nela e no restante. O professor pergunta se a garota gostaria de mandar, assim como ele o faz; e depois, se dirige aos outros, indagando sobre suas insipientes preferências profissionais. Quem disse que a vaga insipiência infantil não deve ser levada em consideração?


3 = 1 + 1 + 1 = 2 + 1 = três) Em alguns momentos, Ser e Ter atinge o sublime; e isso não acontece com falsas promessas de que a vida será um mar de rosas para os futuros alunos do ensino médio, ou que pessoas de comportamentos opostos devem se separar para a manutenção da harmonia, ou ainda que 'tudo dará certo' para um de seus alunos, cujo pai tem câncer. Não, o pulso racional utilizado no decorrer das aulas continua atuando fora delas, nessas breves reuniões com seus 'parceiros'. Sua nova vida pode não ser rósea a princípio mas eu te ajudarei a manter um contato social mais amistoso com seus novos colegas, tratemos de desmistificar esse medo tolo; um time deverá ser formado, afinal, ambas as partes estão em igual situação, tratemos de colocar as diferenças de lado; doenças são fatos constantes na vida de cada um, "você é forte o bastante para superar isso".


4 = 1 + 1 + 1 + 1 = 2 + 1 + 1 = 2 + 2 = 3 + 1 = quatro) A câmera, em posição de atenta observadora, continua a espiar na busca por outro momento de introspecção e extroversão daquela galeria com que possa trabalhar. Ou das carinhas de espanto ao descobrirem a infinidade dos números. Ou das de genuína peraltice na fuga desastrosa de uma abelha. Ou ainda, dos deveres de casa, feitos com freqüência religiosa, na presença de toda a família, cada um opinando erroneamente sobre a inexatidão da divisão proposta pelo exercício. O diretor Philibert se esvai na caracterização do verdadeiro mestre em cena: o professor. O ritmo pausado do documentário apenas reflete seus métodos encantadoramente tradicionalistas. A candura do olhar do Mestre para sua sala vazia após término do ano letivo é revelada com a mesma calma e suavidade anteriores. O intercâmbio da ótica, a qual mira seus pequeninos objetos de reflexão, entre artesão (diretor) e Mestre (professor), de modo que um jamais se sobreponha, ou prejudique a coordenação ritmada do outro é o elemento que alça Ser e Ter ao nível dos grandes filmes. Afinal, se a aprendizagem e o crescimento englobam a percepção de que os mecanismos da vida nem sempre funcionam a seu favor ou o que nos foi dado parece insuficiente diante da respectiva necessidade, ou seja, que um momento é apenas um momento, Ser e Ter ilumina nossos sentimentos nos fazendo perguntar: Quando eles deixam de ser apenas mais um dentre tantos outros? Seriam eles suspensos de outras experiências a partir da conquista progressiva da maturidade?

PRO-


Breve: Ondas do Destino.

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