quinta-feira, janeiro 01, 2004

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2004 log


001. (01 Jan) Pat Garrett & Billy the Kid (Sam Peckinpah, 1973 | vídeo, versão do diretor, MGM, 122' | ****)

{A atmosfera desencantada de Pat Garrett & Billy the Kid recorre a percepção melancólica de que: os tempos mudaram e isso pode influenciar o equilibrado passado de camaradagem entre Garrett e Kid; o advento da lei e ordem é iminente; as terras agora pertencem aos grandes industriais e serão subjugadas a seus interesses particulares, o progresso é inexorável e destrói mitos simbólicos além de desgastar as relações inter-pessoais de outrora. Garrett visualiza a inutilidade da resistência contra o inabalável e cede passagem. O personagem diz logo no início do filme, ao saber por Kid de que um de seus conhecidos morreu: "Pelo menos ele soube a hora certa de partir", ou seja, o amigo, com ficha criminal igualmente encorpada como a sua, partiu sem a obrigatoriedade da mudança forçada ou assistindo ao desmantelamento da ordem até então vigente. Garrett também profere que passar para o lado da lei (dos poderosos, claro) é "um modo de ficar vivo", ele quer envelhecer com segurança, rico e gordo - algo bastante conformista e distante dos planos e atitudes corajosas passadas; já Kid, continua da mesma maneira, ele diz que o amigo Garrett perdeu a coragem e a única coisa que alcançará é uns quilos a mais (ou seja, a riqueza e a segurança não serão conquistadas). Existe um aspecto brilhante no filme: a casa de Garrett é mostrada de relance, o diretor não filma o interior da residência nem sua esposa; isso indica claramente que Garrett é um homem dividido, na corda-bamba entre os dois lados da lei; afinal ser leal à lei dos poderosos não é honesto consigo mesmo (leia-se: com seus ideais) nem com seu parceiro Kid; além disso o fato da não-aparição da esposa faz com que esse conflito se individualize/internalize, como se tudo girasse em torno dele e não houvesse a influência da família para lhe dizer como e porquê agir. O clímax do filme é intenso porque lá os fantasmas são exorcizados e Garrett faz sua decisão. Matar Kid significa matá-lo também e reconhecer que a nova sociedade não poderá abrigar tipos como ele e o amigo, é a dissolução final da parceria e o fim de uma era. A belíssima canção que fecha o filme (composta por Bob Dylan, que também atua) nos fala que "há olhos atrás dos espelhos e rostos vazios" e esse trecho verbaliza a seqüência do assassinato de Kid: Garrett após a execução atira no espelho, localizado logo atrás do amigo (amigo?) e observa rapidamente seu rosto vazio, como se fazendo isso ele procurasse desviar os olhos do espelho que censuram seu gesto e pedir perdão ou desculpas à Kid, buscando sua cumplicidade. Momentos poderosos, que me fazem esquecer da (ocasional) falta de um vínculo maior entre Kid e seu bando (no sentido do apoio de "irmandade" entre eles, existe progresso ou retrocesso nas relações etc.) e de alguns personagens secundários que pouco acrescentam (especialmente na área conflituosa de Garrett questionado [condenando, logo] sua postura ética - isso diminui o impacto do conflito interior pois abre várias frentes de culpa/redenção). Mas como os grandes filmes, Peckinpah mostra em imagens o que poderia ser dito. Isso faz toda a diferença.}


002. (4 Jan) O Tigre de Bengala (Der tiger von Eschnapur, Fritz Lang, 1959 | TV, Telecine Classic, 96' | ** ½)


003. (4 Jan) O Sepulcro Indiano (Das indische grabmal, Fritz Lang, 1959 | TV, Telecine Classic, 97' | ***)

{Os dois filmes acima são luxuosas produções que reafirmam os elementos primordiais de um épico histórico que se preze: comportamento e conseqüência (perdão/pecado, crime/castigo), espiritualidade e o modo como ela interage com os personagens e suas ações, interesse amoroso disputado entre dois pólos completamete distintos (não no âmbito do caráter/honra), conspiração política em família etc. Tigre apresenta sem firulas os personagens e o anti-clímax da trama. O único defeito do filme é a revelação do suposto passado europeu da dançarina, o que aguça o espectador em relação aos pais dela: foram assassinados a mando do imperador ou outra conspiração os vitimou?; O monarca adotou uma postura paternalista em relação a ela e a paixão surgiu aos poucos? Não há qualquer menção às origens da moça durante o restante do primeiro nem segundo. Sepulcro é mais agitado, com conspiração política bem desenvolvida, clima de mistério constante, enfim, tudo amarradinho. O melhor nessa saga são os personagens fortes, anti-caricatuais. A dançarina está em meio a um conflito amoroso, mas é decidida, independente e forte. O arquiteto europeu não é desleal pois se apaixonou pela dançarina antes do estreitamento dos laços com o imperador, é algo que ele, bem, não pode conter. E o governante não é um tirano (mesmo com medidas sanitárias discutíveis), tem honra e foi ferido com a traição, daí o ódio aos dois. Muito bom também é a atmosfera mística indiana, com deuses e deusas que parecem reger o mundo dos vivos, danças ex/róticas, tigres, procissões... É difícil falar sobre filmes como esses porque parecem ser todos construídos com fórmulas parecidas (vide topo) e ao final tem-se a impressão da diversão ligeira e passageira, mas esses daqui são fantásticos exemplos de tramas construídas com inteligência e percepção das intrincadas relações de poder/amorosas em qualquer lugar onde há pessoas reinando sobre outras e com sangue nas veias, coração pulsante. Justamente o que eu estava precisando com urgência, talvez por isso me diverti tanto.}


004. (5 Jan) Gerry (Gus Van Sant, 2002 | vídeo, gravado do Cinemax, 103' | ½)

{Revisito em breve, mas parece que nem Van Sant sabe do que está falando... Envolve a crise do homem moderno, a procura por um caminho próprio, reinvenção de sua relação com a natureza, conversas limitadas (positivo, porque mostra que os dois Gerry's são amigos de longa data e não precisam enfeitar a tela com dilemas existenciais, nem evocar tempos passados para mostrar isso -- eles falam de videogames e programas de TV, no estilo Roda da Fortuna), simbiose, mutualismo (o Gerry de Affleck parece depender da "aprovação" do Gerry de Damon), existencialismo gay (tem uma veia que caminha por esse lado, embora não sei se pode ser aplicado ao filme inteiro). E eu particularmente não comprei nada disso. Os dois personagens apresentados me parecem caricaturas da alienação contemporânea, sua relação com o perigo é estreita e ao mesmo tempo distante, de modo que essa jornada espiritual não representa uma mudança de fato neles, mas sim, um chilique tolinho de inadequação ao mundo. Parece que no final, a natureza é mostrada de forma paradoxal: limpa, em campos de areia quase translúcidos, mas implacável com essa tentativa de procurar "algo", chame de "sentido da existência", o que seria interessante, o desprezo do campo visual do filme pelo próprio conteúdo. Eu digo "seria" porque não consegui levar nada a sério em momento nenhum, é arrastado, simplista (mas talvez isso possa ser perdoado, afinal são duas pessoas conhecidas [isso corta apresentações de qualquer espécie] interagindo - mas e o simplismo de temas importantes sub-desenvolvidos?) e um tanto absurdo (ex.: Damon tem que matar Affleck para que encontre o "baú", numa espécie de "se livre dos amigos, coisas mundanas, para encontrar o caminho de sabedoria plena" ou um desses ensinamentos budistas. No início da crítica disse que assistiria Gerry novamente, isso porque acho que ele tem um magnetismo muito interessante, traz à mesa boas idéias e tudo. Taí, um filme fascinante ruim.}


005. (5 Jan) Água Fria (L'eau froide, Olivier Assayas, 1994 | vídeo, gravado do Telecine Emotion, 92' | ****)

{"Você diz que seus pais não te entendem. Mas você não entende os seus pais."

O que mais me impressiona em Água Fria é a cumplicidade do casal jovem. Interrogados pela polícia ou confrontados com o boletim vermelho e discos roubados, eles se fecham, se calam; só respondem quando há insistência ou iminência da ordem autoritária. Os dois se refugiam de perseguições de diretores de colégios, clínicas para reabilitação, pais severos, atitudes que demarcam seu espaço de ação na sua relação, uma amizade colorida, para colocar em termos histéricos pré-adolescentes. O filme é de uma frieza avassaladora, a fotografia é azulada, não há sorrisos, abraços, contatos físicos entre pais e filhos, satisfação com o mundo. Todos os personagens parecem estar querer mais, ultrapassar as barreiras que forma colocadas indiretamente pela sociedade e sua rotulação excessiva (pais = reacionários, protetores para o bem dos filhos | filhos adolescentes = gostam de beijar, se drogar, dar festas em casas abandonadas etc. precisamos dar "assistência" para a correção desses seres) buscando uma solução, do tipo "ativa-agressiva". Desde o padrasto da menina lotérico e sua relação de proteção com ela (que por sua vez não o trata bem) até a mãe dela, que quer acertar os ponteiros com a filha (mas não sabe a maneira de abordá-la) e o pai biológico, monossilábico na comunicação diária mas incisivo nas atitudes tomadas (vamos dizer que a protagonista também não é a perfeita filhinha do papai - aí reside uma qualidade singular do filme de Assayas, oscilar entre pais e filhos, escutando como um bom ouvinte suas reclamações, mas sem tomar partido de nenhum dos lados). O pai do garoto é compreensivo até demais, tenta "puxar papo" com o filho e estreitar as relações que pelo visto (digo isso porque não tenho certeza se a maleabilidade das palavras dele, compreensivas, são constantes ou se é um recurso temporário para tal aproximação) só se baseiam no boletim vermelho e chamadas da diretoria. O casal foge. Do cotidiano opressivo para um festa com todos os símbolos de liberdade e a conseqüente alienação do mundo real. Sejamos simples aqui: a cena da festa de Água Fria é uma das minhas 10 favoritas desde já. A inocência que ela carrega; a tentativa de organizar alguma coisa por livre e espontânea vontade (a fogueira) sem ajuda, nem conselhos morais de ninguém; o jeito de se "aquecer" fumando, dançando, beijando, ficando lado a lado com a fogueira. A escolha da trilha na seqüência é inesquecível, seu melhor momento para mim foi o fumo comunitário ao som de "Knockin' on heaven's door", que tem uma doçura inigualável (algo que Cameron Crowe tenta fazer [desesperadamente] em Quase Famosos, calculado que só ele) e uma postura de descoberta de si e de seu lugar no mundo, com olhar esperançoso (ou chapado mesmo) e a fumaça saindo quase poeticamente de suas bocas (esse recurso me lembra do magnífico Amor à Flor da Pele). O final da festividade juvenil é também grandiloqüente-em-pequena-escala, eles voltam para as suas casas e a fogueira se apaga; não sei se é uma metáfora, mas acho que simboliza o calor da união e a luz da auto-descoberta se esvaindo no ambiente "real", com frio cortante tomando seu lugar. Passamos para a cumplicidade da dupla, mencionada no início, ela dimensão maior no pós-festa, a busca por uma comunidade alternativa sem água, eletricidade, telefone (belo diálogo: "Mas como é que se toma banho?", "Tem a água do poço. Pega uma bacia e esquenta a água. É simples.", "Já fez isso?", "Não." = em quatro sentenças, Assayas nos diz que a experiência é emocionante para aqueles dois, que o não-feito não deve ser deixado sem uma resposta, sem uma ação; aquela velha história do "melhor ter feito do que se arrepender de não tê-lo"). O caminho é revelador, mesmo que raras são as palavras trocadas (melhor assim, são amigos, não há necessidade... perái. Isso me lembra da crítica de Gerry...). A força do filme inteiro se concentra no momento final. A busca pelo próprio ser necessita do isolamento total, especialmente da pessoa (no caso, ele) que a entenda até mesmo melhor que ela própria. Para alcançar um equilíbrio é preciso o afastamento do cotidiano alienante e da amizade/romance que pode vir a atrapalhar o processo justamente pelo conhecimento mútuo que um tem do outro. Então em uma das cenas mais deslumbrantes dos anos 90 (outra, vejam só!) o jovem olha um papel deixado pela garota e não encontra nada, nem um rabisco, nem uma lágrima, somente as linhas esparsas. É como se essa "busca" não precisasse de justificativas/perdão/permissão ou mesmo aviso, como uma necessidade do ser que ele já pré-enunciava por ela, talvez antes mesmo dela. As linha incompletas parecem dizer: "Complete-as por mim, você sabe o que irei escrever". Isso pode não parecer nada para algumas pessoas mas para mim tem significado especial. [momento íntimo] Era um dia como outro qualquer na escola, íamos para a aula de religião e o professor nos disse que seria um trabalho muito instrutivo. Ele ia entregar para cada um de nós um papel dizendo "Lembranças do ano". Nele, tinha vários balõezinhos, quadradinhos, corações etc. para que completássemos. Os papéis iam passando e você escrevia uma mensagem qualquer neles para cada colega de turma seu. Tive medo. O primeiro ano do Ensino Médio no Abel foi difícil. Tinha saído de Brasília, que adorava, e vindo para o inferno que era o estado do Rio de Janeiro. Amigos, zero (exceto Camila, que está presente na minha breve descrição [melhor seria, discrição] pessoal), recreios, isolado etc. Voltando, meu maior medo era o de que me papel que estava passando fosse ficar incompleto, com poucas mensagens e chegasse rápido demais ao final, na mesa do professor. Isso foi só para ilustrar. "O que isso tem a ver com o tal filme francês?", você pergunta. Camila escreveu no meu uma bela mensagem com a boa noção gramatical que ela tem e a mão certa para deixar, visivelmente, meus olhos marejados. Eu escrevi no dela um "Já sabes..." e o impacto nela foi até maior. É isso, confiar na pessoa a ponto dela completar suas palavras, ações e atitudes. [/momento íntimo] Então, grande, grande filme. Parece entender a urgência de seus personagens, mas isso não altera o senso de gradual e lenta descoberta de cada um (tanto pais como filhos). Filmes como esse tem um timing perfeito para a compreensão de quem está se falando, não há virtuosismos de qualquer tipo, nem conversas alongadas para melhor efeito dramático. Filmes como esse não se encontram todo dia. Filmes como esse sustentam a razão da minha obsessão pela celulóide.}


006. (6 Jan) /Babe, o Porquinho Atrapalhado/ (Babe, Chris Noonan, 1995 | TV, Telecine Happy, 89' | ***)

{Esse ótimo filme familiar tem vários trunfos: humanização bem dosada dos animais, a perda da inocência sem sobressaltos, fazer parte do mundo & deixar sua marca nele são coisas completamente diferentes, polidez e educação no tratamento dos considerados inferiores (os cães acham as ovelhas estúpidas e vice-versa, então não há uma ação unilateral, e sim, falta de entendimento mútuo [se fosse puro preconceito a "mensagem" estaria equivocada a ponto do filme endossar o fato de existir seres superiores a outros]. E adivinhe quem vai se colocar como centro na discussão?), cumplicidade com o dono, sentimentalismo pouco excessivo. Mas também tem um defeito: "easy come, easy go", um pouco esquecível justamente porque é tudo tão fácil. O filme não explora a convivência inicialmente conturbada entre Babe e os outros animais, a discussão do ciúmes entre o cão e o porco se resolve muito facilmente (algo que Toy Story fez perfeitamente com Woody e Buzz), a venda dos filhotes com sentimentos que parecem não durar após a transição para outro quadro (digamos que é dividido em esquetes, narradas por um delicioso coro grego de ratos). É essa a maior falha de Babe: de um quadro a outro não há junção de idéias e aproveitamento e conseqüente melhoramento no próximo, então fica meio desmembrado, sem corpo, nem narrativa amarrada. Fora isso, o irresistível filminho agridoce de sempre.}


007. (6 Jan) /Amor à Flor da Pele/ (Fa yeung nin wa, Wong Kar-wai, 2000 | vídeo, Imagem, 98' | ****+)

{Meu caso com Amor à Flor da Pele começou em meados de 2002. Era uma tarde quente e vi que estava passando um filme muito elogiado (naquela época para ver se o filme valia a pena ou não, ia até o Rotten Tomatoes [link ao lado] e digitava o título original do mesmo). Fui. Não foi o que eu diria amor à primeira vista... Eu parecia não entender muito bem o jogo de redenção/prostração do casal, ficava difusa a linha do teatro com a real. Saí de lá encantado com Maggie Cheung, lindamente vestida, descendo as escadas e indo ao encontro dos noodles. Nat King Cole e uma das minhas canções de cabeceira Quizas, Quizas, Quizas me deixou ouriçado. Alguma química me atrairia a esse filme novamente, não tinha dúvidas quanto a isso. O mais interessante é que ele já estava disponível quando vi no cinema - e eu sabia disso. Só que em uma das críticas do RT vi que era um filme que despertava prazeres sensoriais e que deveria ser visto na tela grande. É verdade, ver Amor na TV é desolador. Fiz um cadastro em um locadora daqui do bairro e vi o filme na prateleira. Não aluguei pois estava encantado com os numerosos clássicos (os primeiros foram Aconteceu Naquela Noite, Luzes da Cidade e Uma Aventura na África se não me falha a memória). O tempo passou e aluguei Amor em janeiro de 2003. Como dito, não é filme para TV mas dessa vez soube aproveitar melhor o enredo e tal. Mas não era o bastante. Eu tinha que desvendá-lo. Isso aconteceu em setembro, quando escutei um barulhinho durante todo o filme: "obra-prima". E na quarta vez (essa) descobri que Amor tem um charme intoxicante que só os grandes filmes conseguem, tipo, Embriagado de Amor. É muito interessante ver um filme (bom, merecedor) várias vezes. As verdadeiras obras-prima, se vistas novamente, tem seu impacto irretocado e irretocável, como se fossem a prova do tempo. Minha cena favorita é aquela em que Tony Leung diz à Maggie Cheung que foi transferido a trabalho para Cingapura e revela que vai porque quer mudar de ares, tentar esquecê-la. E prendi a respiração quando as mãos dos dois se desenlaçam em slow motion. O quase-infarto veio no momento da revelação do treino e ela começa a chorar, não estando preparada (eu sei, parece estranho mas vou tentar explicar o jogo agora). Tudo em Amor se fundamenta na cumplicidade. Afinal, para o casal "desconstruir" o romance dos respectivos cônjuges que os traem, é preciso intimidade. Tony Leung se passa por marido de Maggie Cheung e ela "interpreta" a esposa dele. Logo, para reconstruir a traição (inclui-se aí o "primeiro passo", almoços, motéis) um precisa conhecer a rotina matrimonial do outro, a personalidade do cônjuge e "atuar" de maneira plausível para que essa simulação os faça superar, ou pelo menos entender, a dor que os vitima. Como na cena do "quem deu o primeiro passo", Leung fala diretamente "Podemos dormir fora esta noite?", Cheung, se esquecendo momentaneamente da personagem, diz "Meu marido nunca agiria assim!". Ela se recusa a acreditar que seu marido tenha dado o passo inicial e logo depois é Cheung (se fazendo da esposa de Leung) quem toma o primeiro passo; não importa quem deu o passo ou de como surgiu a atração entre os dois, foi dado, surgiu, mas isso é difícil de ser aceito e Kar-wai parece compreender que essa simulação é feita de atos que são um eterno pisar-em-ovos para cada um (ele pode machucá-la a partir do momento que discursa, endossando a inocência, o "minha esposa foi coagida pelo seu marido" etc. ou ratificar a culpabilidade da esposa e assim "aliviar" a situação de Maggie, seu marido e sua auto-estima, digamos. E vice-versa. Parece que ou alguém sai ferido ou fere a si próprio a fim de proteger o outro. Resumindo, brilhante). Calcular quando tudo começou, o cardápio de cada um no restaurante é racionalizar o irracional, é resumir uma relação espontânea em um puro e simples ato teatral, é controlar emoções que não podem ser mantidas sobre controle. A construção do relacionamento que nasce entre eles é prejudicada pela reoconstrução da triação dos parceiros e esse entrave é complicado porque denota que nenhum dos dois está preparado para uma nova relação. Não há borracha que apaga o vazio emocional do casal. E não há amor que se sobreponha ao conseqüente sentimento de "revide" e "troco" que essa nova relação iria trazer a tona. Como sustentar o frágil amor dos dois em uma base que eles tanto criticam e tentam desconstruir? Como distinguir se é verdadeiro ou uma forma de amenizar as dores? É fácil superar mágoas passadas com os alicerces cambaleantes dessa relação? Como Kar-wai impõe seu domínio narrativo/visual nessa insólita situação? Impecavelmente: Cole, trilha incidental, escadas, fumaça de cigarro, chuva fora de hora, noodles, o vermelho, tudo denuncia a capacidade ilimitada do diretor de criar um clima (No Clima para o Amor, diz o título original americano) que conspira para o amor. O jogo da omissão, a interação passiva, com dúvidas e questionamentos sempre presentes (as faces dos cônjuges de Cheung e Leung não aprecem, o que acentua a verossimilhança do jogo da dupla e funciona como recurso não-distrativo, focalizando o filme só nos dois) leva à prostração e não à redenção e isso era tudo o que os protagonistas menos queriam. Interpretar emoções de terceiros (por mais intimidade que tenham com essas pessoas), cronometrando relações humanas imprevisíveis, é um jogo perigoso já que inibe o próprio jogador de experimentá-las na sua forma mais bruta, essencial. É como se o efeito ocorresse da forma mais branda possível. Kar-wai sabe do que fala. Provavelmente o filme mais rico do novo século (e essa não é a típica frase de efeito que encerra a crítica só para você ir correndo alugar o filme).}


008. (7 Jan) Não Matarás (Krótki film o zabijaniu, Krzysztof Kieslowski, 1988 | vídeo, United, 85' | ½)

{Alardeado como elemento essencial na discussão a respeito da pena de morte, Não Matarás só consegue ser pueril e ingênuo. Eu, que pessoalmente sou contra à pena de morte, achava que um filme que ia ao encontro da minha posição seria de fácil identificação com minhas idéias e seus argumentos seriam considerados e processados por mim (nada contra se a produção fosse a favor, claro que o processo da identificação ficaria mais complicado mas se os argumentos que o filme utilizasse fossem bons e bem desenvolvidos, não haveria nenhuma objeção) - não foi bem assim. Seco, muito seco: é assim que o primeiro terço do filme é. Nenhum crime, apenas gestos e atos ríspidos por parte do protagonista (que parece um adolescente grosso e dono-do-mundo) e, em uma trama paralela, um advogado criminalista (contra a pena - oh! o idealismo em tempos do cólera!) que acaba de ser aceito por uma espécie de OAB polonesa. Essa meia hora inicial poderia ser picotada sem prejuízos (pode-se dizer que o clima criado é claustrofóbico, planos fechados, fotografia quase em preto-e-branco). Kieslowski tenta dar alguma dimensão ao taxista, futura vítima, e revela alguns atos prosaicos como se os mostrando, nos fizesse rever nossos conceitos de contra/favorável, permitindo uma identificação do motorista com o espectador, que conseqüentemente poderia ser jogada contra o protagonista quando o mata logo após; isso, honestamente, não funciona até porque ele se revela nada simpático (jogando o sanduíche feito pela mulher a um cachorro, não atendendo pessoas que querem seu serviço etc.) e esse recurso por si só é muito fácil. O crime é chocante, quando você pensa que acabou, um gemido do taxista acaba iniciando a tortura toda novamente, difícil de aguentar e olha que meu estômago é forte para coisas como essa. Após isso o filme parte para a sentença da execução do assassino, chororô familiar e o advogado idealista-com-planos-para-o-futuro entra em crise por não ter conseguido salvá-lo na sua primeira tentativa no tribunal. O grande problema do filme é o maniqueísmo de sua visão de mundo. O assassino que é mostrado com toda a sua euforia ao matar o taxista sem dó nem piedade, recebe tratamento condescendente como jovem prostrado que não merece morrer. É um bate-assopra irritante. Quer te fazer acreditar que pena-de-morte é injusta (e, em minha opinião, é sim, mas não são esses argumentos tolos que sustentam minha opinião) só porque o condenado beija a mão do padre, chora, pede perdão, pergunta pelo estado da mãe, conta que a irmã foi morta em um acidente e isso pode ter levado a... Estão entendendo o que eu quero dizer? O Estado é pintado com tintas autoritárias (ex.: apressar a conversa entre o advogado e o cliente, o tratamento sub-humano concedido ao prisioneiro [será que Kieslowski já visitou uma penitenciária brasileira?]) e o advogado, como idealista-ingênuo-de-bom-coração-que-ainda-não-perdeu-a-inocência-no-ambiente-corrompido-do-trabalho (acho que ele deveria ver O Sucesso a Qualquer Preço no próximo feriado). O "bem" e o "mal" estão claramente definidos no filme, não há oscilações nem desequilíbrios (até mesmo o protagonista - "do mal" no início e de tão pálido e abatido, merecedor de nossa compaixão no final [obs: ser contra pena de morte não significa perdoar o agressor!] - segue o mesmo fluxo, não há heterogeneidade, mas "ou o sim ou o não"). Tudo tão perfeito. Tudo tão fácil. Tudo tão falso.}


009. (7 Jan) Não Amarás (Krótki film o milosci, Krzysztof Kieslowski, 1988 | vídeo, Look, 90' | ****)

{A incomunicabilidade gerando frutos maduros como esse é sempre um prazer. Esse entrave de comunicação é concebido em duas instâncias: a falta de laços com a vizinha e o auto-conhecimento limitado. Não tem coisa mais bonita que uma pessoa espionando outra (calma!) para se "auto-espionar". É isso que Não Amarás quer nos dizer. Até a cena final atesta o intento, com a vizinha observando sua janela (do apartamento do garoto) e tentando procurar ali, vestígios de sua essência escondida sobre a crueldade de seus atos (vide um dos mais brutais diálogos já ditos de todos-os-tempos: "É isso. Isso é tudo sobre o amor.", após uma ejaculação precoce do menino) e o conforto que ela necessita (e que aquele garoto pode a oferecer) para tanto - o encontro verdadeiro dos dois se dá nesse momento, a intimidade que ele reivindica dela é a mesma que ela quer para si mesma, para completar seu processo de auto-conhecimento, e por conseqüência o dele também. Qualquer filme passa por esse caminho. É o que se chama de catarse: o espectador vislumbra o personagem e nele descobre uma parte de sua personalidade oculta, indesejada, o que for. Troque "espectador" por "adolescente protagonista" e "personagem" por "vizinha" e você terá um excelente exemplo metalinguístico e uma das mais belas homenagens a maior capacidade que o cinema tem: emocionar. Certamente devo assisti-lo mais vezes ao longo do ano e tenho a impressão que a cotação vai aumentar fácil, fácil.}

Clique aqui para ler um texto magnífico sobre os dois filmes anteriores (concordo inteiramente com o de Não Amarás, mas discordo do de Não Matarás).


010. (8 Jan) O Anjo Exterminador (El ángel exterminador, Luis Buñuel, 1962 | vídeo, Sagres, 93' | ** ½)


011. (8 Jan) O Discreto Charme de Burguesia (Le charme discret de la bourgeoisie, Luis Buñuel, 1972 | vídeo, Sagres, 100' | *)

{Acho que estava esperando abordagens diferentes das que encontrei em Anjo e Discreto. No primeiro, a análise é mais determinista, o meio opressivo revigora a faceta de aparências e sua libertação é só uma questão de tempo. É um filme muito bom, sem dúvidas, mas tem ritmo vacilante, personagens demais (e é difícil controlá-los nesse microcosmo e tentar dá-los alguma personalidade humana sobreposta ao comportamento) e sua mordacidade não me afetou do jeito que queria. Enfim, uma sátira com propósitos nobres mas que não passa de farsa bem amarrada e justamente por ser tão bem armada, seu propósito se dilui (mas não posso negar que foi uma experiência divertida) e fica um leve gosto de "muito barulho por nada" no final (as metáforas são interessantes, a do carneiro é óbvia; a mão isolada representa A entidade da Família Adams?, A que balança o berço? Nem um nem outro, mas sim, uma referência à morte no subconsciente; o urso como um símbolo comunista [Buñuel saiu da Espanha na ditadura Franco, segundo uma crônica do livro A Folha Conta 100 Anos de Cinema]). E Buñuel, bad boy, termina seu filme com a Igreja Católica e como o instinto animal de seus fiéis acaba por liberá-los da repetição da condição anterior (se alguém quiser me explicar isso, fico agradecido...). Bem, Discreto é lentíssimo e nada engraçado (um oficial torturador, outro perturbado, sonhos surrealistas, polícia, terroristas, burguesia, falecidos, padres assassinos, jardineiros, infidelidade, cocaína - são engraçados desde quando?) mesmo construído com inteligência. É o reverso de Anjo com um grupo de pessoas sempre impedidos de se reunir em torno da mesa (como se nas tentativas de encontro eles revelassem suas verdadeiras "caras" ou algo assim).}


012. (8 Jan) Chunhyang (Im Kwon-taek, 2000 | TV, Telecine Emotion, 116' | *** ½)

{Elenco desenvolto, execução graciosa, fotografia-enche-olhos, condução maravilhosa, envolvente ao extremo. Tudo isso supera a simploriedade da história do auto-sacrifício feminino (Mizoguchi gosta disso...) e torna o filme na experiência mais agradável e emocionalmente satisfatória que tive em muito tempo. Final feliz mais que merecido.}


013. (9 Jan) A Vida Sonhada dos Anjos (La vie rêvée des anges, Erick Zonca, 1998 | vídeo, gravado do Telecine Emotion, 113' | ** ½)

{"Duplo prêmio de interpretação feminina em Cannes" (merecido!). É esse o slogan de A Vida Sonhada dos Anjos. Ok, o filme constrói a relação das duas amigas com uma cumplicidade e ternura só característicos das produções mais sensíveis (exemplos: Conta Comigo, Lost in Translation...) mas quando vai desconstruir essa relação o filme quase desaba porque é nela que ele se apóia. E, convenhamos, a amiga-racional-que-planeja-as-coisas-e-gosta-de-trabalhar-para-ganhar-a-vida dando uma de conselheira espiritual (Grilo Falante em carne-e-osso) de outra-trabalho?-blah/convívio-social?-blah/relação-com-um-cara-que-"só-tá-te-usando"?-iupiii não dá pé (e quantas vezes vou testemunhar um homem brincando com os sentimentos da mulher devotada? Já não basta? Querem acabar com a minha raça? Querem esgotar o clichê mais convencional para comédias românicas?). Mas eu não posso deixar de apreciar o prosaísmo como palco para o sorriso-à-la-Ameliè de uma e o narcisismo da outra (cigarros, relações com amigos, emprego, ideais etc.), confrontados com vigor e força impressionantes (recorro ao merecidíssimo prêmio em Cannes para a dupla), além da manifestação clara e sem frescuras dos desejos femininos (noivos! Vejam!). Mas a menina em coma e o paralelo com a relação estremecida das duas amigas não funciona bem em um filme realista francês (na verdade as idas ao hospital da protagonista só prejudica o filme, desviando nossa atenção do que interessa para algo que sabemos que concretização é simplória e certa - dois vocábulos que não poderiam ser enunciados em hipótese alguma para o relacionamento das duas). Talvez em um enlatado americano do tipo "O Toque de um Anjo".}


014. (10 Jan) Os Amantes do Círculo Polar (Los amantes del Círculo Polar, Julio Medem, 1998 | TV, Telecine Emotion, 112' | ****)

{Julio Medem me deixou com olhos marejados na conclusão de seu filme (feito? estudo? tratado?) sobre fé, destino, coincidência, amor... Hmmm, falo mais do filme após uma revisão, que se faz urgente.}


015. (11 Jan) Texasville (Peter Bogdanovich, 1990 | vídeo, gravado do MGM, 123' | ***)

{Encaremos os fatos. Esse filme, de modo algum poderia se igualar (superior está fora de cogitação) ao deslumbrante A Última Sessão de Cinema. De qualquer modo me surpreende o fato d'eu sempre ter esse filme "na mão" (ao alcance...) mas nunca me animar em conferi-lo. Talvez porque eu estivesse com medo de Bogdanovich sucumbir seus maravilhosos personagens em caricaturas prostradas e em crise de meia-idade com grande capacidade da auto-consciência irônico-afetiva a ser destilada nos acontecimentos de outrora. Isso não acontece. Talvez sim, talvez Texasville seja mesmo artificial, cheio de pequenos artifícios e engenhosas armações para comprar nosso voto. Mas não o suficiente para eu me importar. Admito: a cotação acima está sob efeitos sentimentais... É interessante você ver o que o tempo faz com cada um. Os personagens do filme de '71 estão vivos na minha cabeça até agora, cintilando... Eu ainda posso ouvir o desesperado desabafo de Ruth na cena final, a morte daquele garotinho inocente, a festa dos sem-roupa, ou a experiência sexual frustrada com a prostituta, a morte de Sam, o revelação do relacionamento entre Sam e Lois, a última sessão de cinema mais definitiva e duradoura... Pena que 30 anos depois, a admiravelmente egoísta-que-tem-conhecimento-do-fato-de-ser-a-mais-gostosa Jacy cresce e ganha maturidade, pais e filho mortos. Duane, o aventureiro, intempestuoso, está passando pela... crise de meia-idade. Sem problemas, eu compro tudo o que vier com o selo da franquia, mas não dá para aceitar um desmiolado como representante pós-adolescência do meu personagem favorito: Sonny. Eu me identifico com a timidez e o desajeito dele no original, mas é difícil comprar a imensa carga de complacência que Bogdanovich arremessa em suas costas. Ele não interage com ninguém - não há um "duelo verbal" com Duanne (restauração dos laços) nem um confrontamento sequer com Jacy. Ele tem problemas na cabeça, então tá, vamos deixá-lo descansando, combates verborrágicos podem confundi-lo, deixemos com que ele preencha a tela com sua voz de freak e gestos doidos. Tá...tá...tá comprado. Mas o que não dá pra comprar mesmo é o filho mais galinha que um ser já deu origem - e honestamente, eu não dou a mínima para qual vagina aquele jovem desmiolado vai enfiar seu pau da próxima vez. Tá...tá...tá comprado & pago. Ah, tem também a relação Sonny/Ruth que ficou no meio do caminho com um ou outro diálogo demonstrando seu instinto maternal e de agradecimento ao rapaz... Tá...etc. Bom mesmo é a sensação de velhos conhecidos que temos de cada um deles, você assiste ao filme mas enxerga além do que ele mostra, vemos vidas em transformações, gestos de aceitação/relutância colidindo, entendimento mútuo, continuidade e quebra, sabe, tudo! Os últimos dez minutos são magníficos e me fazem lembrar de A Última Sessão de tão "compreensivos". O gesto de Jacy & Duanne para Karla (esposa dele) buscando compreensão e a recepção de olhar de aprovação pelo casal é mágico. São cenas assim que me deixam quase sem palavras. Sr. Bogdanovich pode fazer qualquer coisa com esses personagens, eu compro, pago e guardo na dispensa (da cachola).}


016. (12 Jan) /Todos Dizem Eu Te Amo/ (Everyone Says I Love You, Woody Allen, 1996 | vídeo, gravado do Telecine Happy, 101' | ***)

{Encantador, ultra-charmoso. Num fiapo de roteiro (perdoável, todos os musicais os têm), mas bem desenvolto com aquela gama de personagens adoráveis, Woody Allen extrai a alegria do amor de cada integrante do elenco - e o resultado é memorável: canções que integram os estados de espírito dos mesmos, elevando-os, deprimindo-os, fazendo-os enxergar além do amor etc. "I'm Through with Love", "My Baby Just Cares for Me", "Making Whoopie" dentre outras, mantém o filme nas alturas... Eu diria: "maravilhosamente superficial". Mas eu poderia viver sem Julia Roberts à la my-dream-came-true!!!}


017. (12 Jan) /Ladrão de Alcova/ (Trouble in Paradise, Ernst Lubitsch, 1932 | vídeo, gravado do Telecine Classic, 82' | ****+)

{Most any place can seem to be a paradise
While you embrace, just the one that you adore
There needn't be an apple tree with magic powers
You need no garden filled with flowers
To taste the thrill of sweet greed hours
Gentle perfume and cushions that are silk and soft
Two in the gloom that is silent but for sighs
That's paradise while arms entwine and lips are kissing
But if there's something missing, that signifies
Trouble in paradise
}


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