sábado, julho 10, 2004

Considerações sobre a magnífica cena do disque-sexo de Punch-Drunk Love:

(não, eu ainda não falei dela nas prévias vinte mensagens sobre o dito; sim, eu o assisti novamente hoje e, mamma mia, #1 etc.)

O apartamento de Barry é obviamente impessoal de tão clean e funcional (ver: luz do quarto é apagada ao se bater as mãos; mesa de jantar com todo o 'aparato técnico' já disponível [o forro do prato, saleiro etc.] só faltando o prato, talheres, copo e a comida congelada, provavelmente o frango teriyaki de $1,79), burocrática é também a atendente do 'serviço via fone' questionando a respeito de todos os aspectos que fazem de Barry um cidadão exemplar (seguro social, número do cartão de crédito e validade, endereço e telefone para contato). Essa intromissão é severamente confrontada com as intenções de Barry ('Você Está Preparado Para Um Caso Íntimo? Encontre o Amor! Fale ao Vivo!' diz o anúncio, verdadeiro golpe publicitário aos ingênuos out-of-system freaks), afinal, ele só quer falar com uma garota qualquer, sem nenhum atributo físico que sobreponha uma a outra em contexto parecido. Barry fecha as persianas como se acreditasse na verossimilhança do enredo de Janela Indiscreta e, pior, de modo a endossar rigorosamente a parte culposa de recorrer ao 'sistema' para satisfazer suas necessidades mais básicas (talvez o embaraçoso encontro com Lena - ela deixa o carro estacionado ao lado da loja de Barry - testemunhe a favor de seu rompante). Da mesma maneira, observa desconfiado pelo olho mágico da porta, acreditando que vizinhos xeretas são problemas recorrentes dos neurastênicos de plantão; assegura-se que a mesma está devidamente trancada (pessoas possuem chaves-inglesa em suas caixas de ferramentas!) etc. Bizarro é a permanência da televisão ligada em um noticiário genérico. Não seria um estepe válido caso o elemento constrangedor irrompa via fone? Algo como a segura tecnologia da TV validando o caos instalado no telefone? E é basicamente isso que recebemos pelos próximos minutos. As expectativas de Barry são altas. Observe que após resolver a parcela pouco orgásmica dessa conversa, discutindo o preço do serviço dentre outras amenidades, ele espera o retorno da ligação, desta vez, com a tão desejada companhia feminina. Ele se acomoda - com o telefone em mãos - em uma das seis cadeiras de sua - pouco usada - mesa de jantar, exatamente no extremo oposto de onde ele, regularmente, ingere sua comida-microondas-isopor. Essa composição de plano é fabulosa (nota: os filmes de PTA oferecem as melhores lições práticas quanto à 'Essa Cena Não Poderia Ter Sido Feita de Outra Maneira Pois Apresenta Composições Esteticamente Sublimes'): momentânea esperança de que aquela ligação traga coragem para posteriores declarações a alguma pessoa (não especificamente Lena, pois apenas um encontro, desastroso, ocorreu) ou apenas alguém compartilhando com ele um futuro delicioso pudim da Healthy Choice e posteriormente, uma aliança. Ele pede para a recepcionista conferir para si a alcunha de Jack, de modo que a garota não saiba seu nome verdadeiro. Essa estranha manifestação pró-impessoalidade vai brutalmente de encontro aos objetivos calorosos de Barry. Talvez ele acredite que a simples menção de seu nome pela sexy-girl impedirá que ele aja naturalmente (minutos antes, em uma conversa impregnada por um autoritarismo de benignas intenções com sua irmã, ele declara que se a mesma trouxer para uma festinha de família sua amiga de trabalho [Lena], ele 'agirá como outra pessoa') já que, convenhamos, ele não conhece a pessoa do outro lado da linha assim como desconhece todos ao redor (lembre do belíssimo diálogo: 'Eu não sei se há algo de errado comigo porque não sei como as pessoas são.'). O processo de conquista da confiança é dolorosamente recompensador. Barry pergunta para a garota (chamada Georgia Peach) de onde ela fala. Ela responde: 'da cama'. Ele replica: 'não, de que estado?'. Ela: 'Califórnia, assim como você. Vamos marcar um encontro?' Ele (pensando): 'encontro? Já?'. Quando ela questiona Barry se caso ele quer saber como sua interlocutora é, fisicamente; primeiramente ele revela não se importar (certo, a aparência não é importante, afinal ele não vê a cor desde seu nascimento). Mas segundos depois ele diz que não tem como checar se as informações passadas por ela são verdadeiras (= processo de confiança mútua instável). Mais adiante, Georgia Peach indaga a respeito de seu aspecto físico. Barry declina com um ligeiro 'não importa...'. Em menos de um minuto, PTA revela que Barry: a) funciona apenas em condições favoráveis de 'segurança' (i.e.: confiança); b) o 'contato físico' dele com Peach apenas se estabelece através do 'áudio' e não do 'audiovisual', não há motivos para tranformá-lo em algo maior [nesse momento], ainda mais quando Barry se sente um covarde limitado como no momento (ver rituais de 'vedação' do apto.). As várias verificações de Georgia quanto ao estado, inflado ou não, do pênis de Barry são 'quebradas' com insinuações das mais inocentes proferidas por ele (ela: 'o que você está fazendo?', ele: 'falando com você.'). Na minha opinião, o que mais me deixa ouriçado/fascinado/deslumbrado quando assisto PDL outra vez é essa alocação bizarra do que é tipicamente pessoal e do que é 'apresentável socialmente' categorizada por Barry. Ele confere todas as suas informações pessoais à atendente, diz que tem uma micro-empresa para Georgia etc. mas não permite que seu nome seja revelado para a pessoa que terá maior contato (Georgia), enquanto a recepcionista do sistema tem livre acesso ao mesmo, afinal, nenhuma intimidade será compartilhada com ela, apenas os usuais dados burocráticos que nos fazem legítimos a esse mundo. Barry, para a atendente, é pura estatística, mais um dentre tantos pervertidos, buscando um alienado sexo virtual; mas essa imagem não pode, em hipótese alguma, ser passada para Georgia, ele quer os olhos da garota mirando-o como um notívago solitário em busca de afeto nos braços (/no papo) de estranhos. Enquanto Barry se masturba (provável confiança plena), a TV (aka: o estepe) desliga automaticamente e o abajur aparece, pela primeira vez em cena, inclinado (aka: tecnologia < interação entre humanóides = você fala com a pessoa, o fone é apenas o meio de contato e não a materialização do interlocutor). Pérola da reticência é descobrir que Georgia e Barry conversaram sobre o aluguel do apartamento da garota nesse mesmo telefonema. PTA preferiu encobrir o rumo posterior das coisas pós-masturbação a fim de declarar que no dia seguinte, como um 'bom dia' da amada via fone, não pessoalmente (e isso realmente acontece, Georgia diz que ligou para dar 'bom dia' para o acompanhante da noite passada), um intercâmbio de coisas secretas ocorreu por aquelas bandas. Nós apenas sabemos que laços foram estreitados, o que é ainda mais íntimo quando da ejaculação somos levados à novas palavras e não ao fim da ligação. Se 'Escrever é cortar palavras', filmar é [ligue os pontos]...

... Daí surge o aspecto contraventor/ilegal do disque-sexo, e Barry, impulsionado por Lena, veste o terno azul do super-herói, lutando a favor do mundo que lhe deu paz, amor e, sobretudo, (auto-)confiança.

PRO+

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