sexta-feira, março 05, 2004

Os Guarda-Chuvas do Amor

- proceda com cautela, segue alto teor de glicose; ingerir dois copos-de-requeijão de água e tomar cuidado extremo para não engasgar.

Basicamente (esse tipo de expressão redutora não deveria ser colocado perto de qualquer texto sobre esse filme) um poema sobre a transitoriedade de sentimentos e sensações, inerentes à vontade do amor até-que-a-morte-nos-separe. A história, pura e delicada do romance de dois jovens separados pela guerra, é inteiramente cantada (e esse recurso formalista soa nada intencional - muito pelo contrário, só endossa a impossibilidade de Guarda-Chuvas ser narrado de qualquer outra forma) e dimensiona como poucas a candura e urgência do amour fou juvenil. Os planos para casamento, moradia dos sonhos, penca de filhos (os nomes incluídos) estão todos presentes, assim como a mãe da heroína, centralizadora e preocupada com as finanças avermelhadas da família. Após a separação (a guerra é realmente cruel), a distância física afeta o emocional da garota desolada ("quem fica está em pior situação em relação ao que partiu" - mesmo que esse último alguém esteja no front): a memória falha ("Quando penso nele, eu vejo só sua fotografia"), o amado está "escapando" dos seus desejos íntimos e repentinamente o que parecia eterno é resguardado a um baú empoeirado. E, o que estava se desenvolvendo como um doce coming of age (com descobertas do sexo oposto se misturando e acrescentando nuances ao próprio processo) se transforma em um conto aterrorizante que realça a impossibilidade do amor, o imediatismo jovem que contorna o conformismo mas não perpassa as duras circunstâncias etc.

A alegria contagiante da primeira metade e a fé que depositamos em um reencontro burocrático-como-os-finais-felizes desaparece com a seqüência final, um breve reencontro da dupla. Em um posto de gasolina (um dos vértices dos planos perfeitos para o futuro do casal - grande ironia [o outro se constitui nos nomes do filho de cada um deles, iguais aos previamente escolhidos]), poucas palavras são trocadas. Secas, gélidas, impassíveis. O contexto é distinto (cada um deles se casou com outras pessoas: ele, "quem sabe dá certo, podemos tentar e ver-no-que-vai-dar..."; ela, conveniência e apoio pela gravidez do antigo namorado) e os devaneios de surpreendente rebeldia contida se desvirtuam tão perfeitamente que é difícil não se pensar na ausência de Justiça Divina no Reino dos Homens. É como se eles não se lembrassem daquilo (afinal, mais de dois anos se passaram e um rumo já foi conferido as suas vidas) mas e quanto a mim, a você, aos espectadores? Testemunhamos a v'e/o'racidade daquela paixão para toda aquela intensidade se dissipar em um curto circuito? As melodias encantadoras de Michel Legrand ainda soam latentes em nossas cabeças (convenhamos, há 40 minutos atrás estávamos vendo aquilo acontecer)! Não é possível! Eu quero as cores pastéis, o idealismo, a devoção extrema novamente... E em um ato de maestria do diretor Jacques Demy, a música que os acompanhava há tempos nos (re)lembra a existência da paixão jovem e solta um lamento pelas chances de felicidade e concretização irremediavelmente perdidas, insistindo na memória nostálgica e dizendo "não" em alto e bom som para as irreversíveis circunstâncias que os oprimem. Os tons pastéis voltam como souvenirs mas a realidade prática continua a nos atormentar a todo instante.

93


Obs.: Em uma revisão, a primeira parte, alegre que só ela, se transforma no principal momento para lavagem ocular (especialmente minha cena [melhor dizendo: trecho] favorita: logo após a saída da danceteria, o casal - no cais - falando/cantando "trivialidades" extremamente importantes para cada um deles [os planos! os planos!] naquele momento de suas vidas. Snif.), justamente por fornecer esperanças com prazo de validade vencido para este pobre espectador sofredor. Logo, antes ou após a sessão, beba mais copos d'água como reserva.

Obs. final, para o alívio de ambas as partes: Eu sei que essas brincadeiras não tiveram a menor graça, só estão aí para balancear a tristeza desesperadora que o filme provocou em mim (e muito provavelmente, em você também).

Nenhum comentário:

Postar um comentário