quarta-feira, março 03, 2004

Dogville

Imagine um grande contingente de imigrantes, fugindo de perseguições religiosas, guerras tribais/civis, se apossando de terras livres daquela respectiva espécie de opressão, libertas de líderes autoritários e inflados sentimentos ufanistas. Os habitantes do país que recebeu essa leva de migrantes, mais especificadamente da cidade/região em que eles se abrigaram, não aceitam isso muito facilmente; não é conveniente e muito menos conivente. Por mais que os aspectos históricos contradigam essa recepção pouco calorosa (as tribos indígenas foram quase dizimadas na presença dos primeiros colonizadores, isso só para ficarmos no contexto do continente americano), a aceitação de estrangeiros é um processo complicado que nem sempre culmina em um aproveitamento comunitário do espaço, mas sim, na criação de uma mentalidade xenófoba.

A minúscula cidade de Dogville é representada por linhas brancas no chão delimitando paredes, ruas, arbustos e poucos objetos em cena (que, por sua vez, são deveras representativos: o armário com os remédios ao lado da poltrona na residência do hipocondríaco; as cortinas pesadas na habitação do senhor cego; a cama e cadeira de rodas na casa da menina deficiente). O sentimento universal que essa teatralidade provoca é intencional. Qualquer espaço urbano poderia ser Dogville ou pelo menos a conter em alguma porção significativa. As tomadas superiores reforçam a condição de jogo de tabuleiro, como se Deus - e o espectador, por extensão - observassem a Criação. Pode-se ver o dia-a-dia pacato dos habitantes, sem limitações de qualquer espécie; a interação de cada um deles (mesmo não ocupando o mesmo espaço, a sensação que essa técnica nos passa é a de união das diferenças, misturadas em um mesmo saco) aumenta, a medida que um senso de transparência e honestidade (uma referência ao todo-mundo-sabe-da-vida-de-todo-mundo das cidades interioranas) se estabelece nas relações sempre cordiais entre os mesmos.

Mas essa aparente cordialidade não seria apenas um registro funcional? A luz que incide em Dogville durante Prólogo ou na recepção calorosa de Grace não estaria beneficiando-a e retocando suas mágoas e ressentimentos com cores amenas? O arbusto se tornaria mais belo que nunca na primavera mas e o espinho que inegavelmente estava contido ali, iria o acompanhar no processo? Ao mesmo tempo que a cidade é vista por olhos condescendentes aos quais as pessoas que nela residem se esforçam para sobreviver (copos comuns transformados em artigos finos com uma técnica caseira; tortas vendidas a preços elevados devido à ausência de concorrência) e permanecer sãs (visitas semanais ao bordel local; a observação meticulosa e quase religiosa do pôr-do-sol por um cego), essa visão não deixa de examinar seu interior ("Essa cidade apodreceu de dentro para fora", diz um deles), os mecanismos humanos cruéis empregados especialmente na figura de Grace. Dogville é pura e correta? Só quando as idéias de pureza e correção validarem/apoiarem esses mecanismos. É um ambiente provinciano baseado na agricultura? Claro, interesses no capital estão em jogo (e daí, o contexto da Depressão Americana desaparece - e qualquer menção à obrigação de proteger a família e seus bens também é infundada - como fator essencial para justificar essas atividades).

Essa mudança de perspectiva é observada durante o decorrer do filme, mas a complacência continua pelo menos até o capítulo final. Grace, quando "apanha na face direita" oferece a esquerda para o mesmo fim. Ela é um presente dos Céus que busca preservar a idílica comunidade criada por Tom (que, segundo ele, está cada vez mais isolada no tour inicial no qual Grace é apresentada à Dogville). A exemplificação/ilustração de Tom busca categorizar cada reação daquele ambiente, a inserção de Grace ali é estudada como se fosse uma jogada decisiva em uma partida de damas. Ele centraliza a Moral e a generaliza para cada um dos moradores, todos são uniformemente decentes mesmo admitindo que cada um tem personalidades distintas. Tom parece ajudar Grace de forma a testar os limites de suas idéias (arrogantes) a respeito do idealismo do "fazer o bem sem olhar a quem", compaixão com desconhecidos. Ele quer satisfazer as necessidades altruístas dos cidadãos preenchendo-as com uma espécie de filantropia nitidamente falsa da mesma maneira que essa troca desigual de favores se constitua em um tecido para os livros de sucesso que sonha publicar. Em suma, os interesses literários de Tom pelas pessoas e suas reações são assimilados pelo mesmo através da recepção de Grace, uma doce mártir, pelos cidadãos; o fato dele querer que ela fique a todo custo só demonstra que o jogo ilusório não pode acabar até que uma resolução "psicologicamente" satisfatória seja encaminhada. O duelo travado entre ambos nas cenas finais é estupendo, a consciência individual que ela tenta passar para o "aliado" é vista, por ele, como uma forma de subestimar a sua capacidade intelectual. Tom é individualista até o fim, o valor que concede à sociedade tem motivos escusos, e só de escutar alguém o advertindo sobre os malefícios de relegar uma opinião própria o deixa perplexo pela falta de intimidade de um para com o outro.

Após o término do filme, perguntas martelam: Por que Grace ofereceu a outra face? Se não fizesse isso, revelando a verdadeira identidade e acabando com o seu martírio, Dogville poderia ser salva. Seria um pecado interromper a experiência naturalista no momento do embrutecimento das relações entre a mesma e o restante? Deixar a cidade de pé ou destruí-la? Quem tem o direito de matar seus opressores? O exemplo individualista de Grace é superior ao de Tom. Para ter conhecimento da sua excessiva piedade e comiseração com terceiros (levando em consideração o duro contexto da Depressão), ela abole o perdão e considera a experiência como uma forma de reassumir a qualidade indelével a ela: arrogante. O mecanismo da individualidade só encontra obstáculos ao se deparar com um contingente de pessoas autoritárias, cruéis, vis, que necessitam de uma absolvição. Grace poderia coroar aquelas pessoas como vítimas, mas entende que nesse ponto sua arrogância é nítida. Um padrão sócio-econômico inferior não pode significar um desvirtuamento da moralidade de maneira tão simples. Ela compreende que a criteriosa preservação da pureza se restringe ao próprio ser e não às duras condições de vida que eles possam vir a enfrentar.

O conflito entre individualismo e coletividade já rendeu diversos frutos, mas em poucos, as respostas foram dadas de maneira tão nebulosa. Aliás, existem respostas em Dogville? Como todo grande filme, os fins não justificam os meios. Apenas justificam a situação presente, aquele momento, aquela sensação contida ali há tempos. É gratificante o fato de Lars von Trier saber que o buraco é mais embaixo e, mesmo assim, não tentar cobri-lo com terra ou respostas fáceis. Ele é deixado lá, exposto para quem estiver disposto à encará-lo. Até os emocionantes créditos finais justapostos com Young Americans são irônicos porque contradizem a ausência de explicações desnecessárias (e, portanto, a atitude final de Grace).

gssa, 03/03/04.

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