quarta-feira, abril 21, 2004

Quase pronto, quem leu a primeira versão, releia tudo, inclusive o 1o. parágrafo, modificado.


Sobre pedras e telhados de vidro

Existe algo de mágico nos filmes de Eric Rohmer. São bastante simétricos (observar a divisão do conjunto da obra em contos "morais", "estações" e "comédias e provérbios") e a temática é recorrente, abordando como o compromisso pessoal, o sóbrio (e, por vezes, opressor) bom senso e a atmosfera do "será que estou correspondendo às expectativas?" são fatores que atormentam e desencorajam a busca de seus personagens por uma auto-libertação indireta, sempre indicando que isso é proibitivo e aquilo, um tiro no escuro/pé; geralmente utilizam do tom confessional para montar um discurso coeso sobre suas aspirações e aflições, como se dessa maneira, uma certa ordem (ou pelo menos, a criação de uma planilha que catalogasse toda essa pequena variação comportamental em respectivas versões compartimentadas, mais fáceis de manusear) pudesse ser infligida ao caos circundante. E como é interessante mergulhar de ponta nos mixed feelings da classe média francesa. Como dito, tudo gira ao redor do compromisso; e daí, surge a primeira turbulência: deve-se considerar o leque de sentimentos do outro ou o próprio primeiramente? Essa questão só adquire a ressonância precisa porque nos filmes do diretor não há uma separação tão criteriosa de valores e virtudes individuais, de modo que, permanecem difusas, em uma heterogeneidade homogênea, por assim dizer. Cada ser envolvido deve cautelosamente observar sua pedra e o provável efeito no telhado de vidro alheio e vice-versa.

Em um mundo tão instantâneo, veloz, self-qualquer-coisa, sustentar opiniões é tarefa homérica devido às idéias divergentes e, especialmente, a inacessibilidade de uma para com outra; são choques esvaziados de sentido pois não oferecem margem à algum tipo de debate inter-pessoal. Ao mesmo tempo que nosso ambiente não aprecia a coerência racional, ele parece dar de ombros quando arremessado à possibilidades do acaso, do engajamento a uma lógica arriscada e imprevisível, ou seja, na aposta da própria existência. Os filmes de Rohmer, nesse contexto, funcionam como um desafabo honesto, resultantes da equação lógica racional + gosto pelo risco. O diretor está ciente do quão maleável e incerta essa equação é, mas também, da sua exatidão e certeza de concretização; em outras palavras, trata a matemática das relações humanas como pensamento e não, reduzindo assim suas potencialidades, mera técnica. Não existe nada de errado na verborragia desenfreada de seus filmes justamente porque elas atestam a capacidade dos personagens para a auto-análise, buscando algum tipo de cumplicidade entre o que está acontecendo momentaneamente em suas vidas (são quase inexistentes sobressaltos temporais narrativos, de maneira a forçar suas marionetes a lidar com sua problemática em uma freqüência absolutamente incessante; o recurso da passagem do tempo para cicatrização ou a fim de propiciar o surgimento de uma pequena lâmpada acima das cabeças atormentadas, definitivamente não vigora) e as possíveis ramificações disso nos próximos anos, podendo ocasionar uma mudança brusca no curso de suas vidas, uma guinada do destino ou simplesmente, a adaptação à nova condição; com esses mesmos personagens fazendo outros pedidos para a estrela cadente ou o bolo de aniversário, diferentes dos anteriores, pré-complicações atuais... bem, isso até que uma promessa antes sagrada ou um compromisso outrora inabalável, necessitarem de uma indelével ruptura.

Os dilemas sentimentais pontuam a trama de suas produções, mas eles são envernizados com assertivas sobre a inerente insatisfação do ser humano comum e como esse sentimento os move a procura de algo ousado, com n facetas, mas que se encaixe com precisão na singularidade daquela pessoa e, principalmente, no ritmo característico dela. É uma desconstrução/quebra objetiva, mas vista sob ótica subjetiva, cuja finalidade é a própria (re)construção do dito. Os acasos das paixões arrebatadoras ou das conversões são colocados em uma lupa pela galeria que desfila em seu cinema. Eles agem, não raro, de modo condescendente e expõem com veemência as armadilhas que poderiam estar, inicialmente, presentes em uma comédia de espírito livre de um Hawks ou (ah!) Lubitsch. Após algum tempinho de projeção, percebe-se: a) o protagonista de Conto de Verão está indeciso entre três mulheres, buscando na comparação das diversas formas de amor (carnal, espiritual, fraterno, blind chance), uma maneira de peneirá-las a seu agrado; b) essa indecisão proporciona uma forte carga de instabilidade no mesmo, já que a decisão segura de cada uma se contrasta abertamente com suas incertezas, ele está testando possibilidades já comprovadas por elas, individualmente; c) existe uma reciprocidade entre o personagem e cada mulher; um dos aspectos que o auxiliam (ou atrapalham) é o que exatamente ocasionou a atração, talvez de posse desse conhecimento, ele angarie condições para avaliar as prioridades de suas paqueras e até que ponto essa atração traz anexa em si uma parte do que ele acha benéfica para um início de relação. A partir do instante no qual se avalia o amor do outro como extensão das possibilidades de concretização do seu sentimento pela respectiva pessoa, o narcisismo latente dessa relação é indefensável diante do acúmulo de dúvidas, incertezas e inconstâncias. Os protagonistas estão no comando (ou pelo menos, acreditamos que assim o seja), mas a tempestade é avassaladora o bastante para que deixem o posto.

Um certo desconforto em relação à independência que parece separar indivíduo de sua vida rotineira, na qual todas suas certezas são fundamentadas é trabalhada por Rohmer. São filmes de férias, com o máximo de proveito dessa premissa: reconsiderações sobre os meses passados, novas resoluções etc.

ok, interminável.


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