sábado, novembro 27, 2004

retirado de um trabalho feito para a disciplina cursada de cinema, com alterações que só uma mente fria (isto é: após a entrega do dito) poderia conceber. somente o último parágrafo tem (pequenos) spoilers.


Nos primeiros anos do cinema, o conceito de espaço-fora-da-tela* propicia o surgimento da idéia de um mundo em expansão; a movimentação interna e da câmera sinaliza o surgimento de uma noção segundo a qual algo se encontra no limiar de sua revelação. Essa naturalização do espaço fílmico cria uma dinâmica constantemente reversível entre o espaço visto e o espaço intuído, logo, a câmera está sempre apta a percorrer as fronteiras do concreto e do imaginário. Tais noções contribuem para a evolução da linguagem cinematográfica ao romper com as limitações do teatro filmado, vigente nas produções comuns ao período, no qual toda a ação dramática se desenvolve e se esgota dentro do quadro. São planos estáticos, de ponto de vista único, com cenários de tendência centrífuga e personagens cujo corpo é visto inteiramente; tais planos não se prolongam e não são complementados por outros, ao contrário dos que utilizam o espaço em off, conscientemente visto como cinematográfico em sua essência.

O espaço-fora-da-tela é empregado de forma surpreendente em Antes do Pôr-do-Sol (Before Sunset, Richard Linklater, 2004). Em um filme tão perceptivelmente guiado pelo acaso, com ares de improviso certeiro (e, segundo consta, somente ares), um toque visível de direção é hiperbolicamente ajustado. A seqüência de abertura revela uma série de stills que indicam os lugares pelos quais o casal Delpy/Hawke transitará no decorrer da metragem: cafés, parques, vielas, margens do Sena, em breve desbravados. O espaço-fora-da-tela está conscientemente relativizado, a ação dramática não se esvazia ao se conjugar esses ambientes com a presença ou ausência dos dois atores. Pelo contrário, ela ganha um significante ao propor uma nova maneira de observar os espaços vistos anteriormente através de câmera estática, uma espécie de terceira dimensão se descortina a partir da utilização desses diversos ambientes em sintonia com a jornada proposta. A utilização do espaço-fora-da-tela em Antes do Pôr-do-Sol nos pede que juntemos as diversas fotografias iniciais e as exploremos em trabalho conjunto com Delpy e Hawke. A dramaticidade de tal recurso reside no contraponto que se pode estabelecer em relação ao filme anterior, Antes do Amanhecer (Before Sunrise, Richard Linklater, 1995). Neste, Linklater optou por conclui-lo com uma série similar de tomadas fixas. Essas tomadas finais mostram uma coleção de lugares vienenses, sob aparente sol matinal, os quais o casal percorreu na tarde/noite anterior. Tais elementos são configurados de modo ameno e aprazível, como uma lembrança encarada como experiência indelével, reforçando o pacto feito na estação de trem para um encontro futuro. Com uma diferença sutil no posicionamento destas, Antes do Pôr-do-Sol aloca esses fragmentos de modo a propiciar uma reflexão sobre a apresentação de uma "realidade" que será brevemente dominada por devaneios e rompantes românticos.

Em Antes do Pôr-do-Sol, logo após essa série de stills supracitada, temos uma sessão de autógrafos do livro cuja autoria é do personagem de Hawke (Jesse) em uma livraria parisiense. Os jornalistas e demais presentes apresentam saudável curiosidade a respeito do cumprimento ou não do pacto feito nove anos atrás (é interessante notar que permanece ambígua a revelação ou não da cronologia entre os dois eventos para os leitores do livro e jornalistas) e elaboram questionamentos que envolvem a marca pessoal do autor na própria prosa, elementos autobiográficos inconscientes. Durante a réplica de Jesse, Linklater insere momentos antes vistos em Antes do Amanhecer, e com o final deste desenrolar de imagens, um corte revela a figura atual de Delpy (Celine) se sobrepondo "lentamente" ao processo de conquista do sentimento nostálgico. O espaço-fora-da-tela, no caso, é o ponto de vista de Jesse: a articulação de instantes diversos por sua pessoa permite um intercâmbio entre passado e presente, mas que só se concretiza verdadeiramente com a presença de Celine no evento. A escolha do instante para a revelação dela é estritamente subjetiva, ocorrendo quando o olhar de Jesse é direcionado para a entrada da livraria; logo, isso estabelece que Celine poderia estar ali anteriormente ao momento da própria aparição, escondida, encoberta pelas seqüências do filme anterior. Após notarmos sua presença, a câmera se volta para Jesse, que finaliza, trêmulo, seus argumentos. Neste caso, o espaço-fora-da-tela se transforma em espaço-da-tela para em seguida retornar a condição anterior.

O espaço cênico pode ser reconstruído nos momentos finais de Antes do Pôr-do-Sol, com o casal no apartamento de Celine. Ela precisa provar seu amor por Jesse, idealizando aquela noite, e a canção de sua autoria - uma analogia com o livro escrito por Jesse -, A Waltz for a Night, valida sua responsabilidade de fazer jus ao comparecimento de Jesse ao encontro proposto há nove anos atrás. Em um filme que comumente enquadra em conjunto Jesse e Celine, instantes nos quais se percebe um entendimento mútuo entre os personagens com o diferencial do "afastamento" pelo corte, simbolizam a utilização do espaço-fora-da-tela, construído a partir da troca de olhares que, invariavelmente, indica o prolongamento da ação. O fio narrativo que se estabelece entre os planos indica uma conexão pessoal que não se fundamenta puramente na reunião da dupla no espaço-da-tela, mas sim na transcendência de uma demonstração de amor, capaz de ultrapassar o arcabouço construído em nove anos através do lamento reticente pelas possibilidades não concretizadas daquela noite: a um só fôlego, o passado é revivido e reconhece-se a transitoriedade do tempo.



* resumidamente: o espaço-fora-da-tela, conceituado por Noel Burch, divide-se em seis segmentos. Os quatro primeiros têm como limites imediatos os quatro cantos da tela. O quinto segmento se define como o espaço "atrás da câmera", enquanto o sexto compreende tudo o que se encontra atrás do cenário ou atrás de um elemento do cenário. Em um limite extremo, este segmento de espaço se situa "atrás" do horizonte.



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