quarta-feira, maio 05, 2004

Então, a quase-unanimidade prevaleceu. Eu sei que vocês adoram uma catarse antes-ele-do-que-eu, um narcisismo pós-moderno enfeitado com ares indignados-com-causa-externa etc.

Então, ligue o censor comoção mecânica e comece a leitura:


Boletim de ocorrência:

Registro de número: 67383942
Data: 29/04
Local: Ingá, calçadão da praia das Flechas, perto do cinema da UFF, após término das aulas.
Destino: pegar o ônibus para casa


Meio-dia: [assuntos burocráticos processados] Se o depto. de Sociologia estiver fechado e minha transação, conseqüentemente indo diretamente para o bueiro entupido da Cedae [referência aos múltiplos problemas da cia. de abastecimento de água do estado fluminense nos últimos dias] vou pegar um martelo e quebrar a vidraça que separa os funcionários públicos sempre out-of-there dos alunos sempre out-of-mind [ver Embriagado de Amor].

Meio-dia e um: [conexão social] Nossa, como a mistureba desse lugar pode ser tão desordenadamente orgânica.

Meio-dia e dois: O calçadão da praia das Flechas é tão interessante (estreito, com vista para o mar quebrando nas rochas enquanto pescadores fazem sua parte na Divisão Social do Trabalho - vide Durckheim - e surfistas mirins cabulando aula a fim de se enveredar pelo risco de contração da leptospirose - entre outras, diga-se -, uma cabine de polícia que poderia dar uma sensação de conforto caso uma alma-viva - morta em alguns dias, o caso-Rocinha ainda não saiu das manchetes dos jornais - estivesse por lá), estou tão feliz, tudo parece no seu devido lugar, meu senso de ordenação descoordenada está a pleno vapor etc.

Meio-dia e três: Opa, dois caras (um negro e um branco --> parceiros no crime --> ops, deletem esse dado por favor, caso contrário a história perde o tom de ohhh-quem-diria-!) de 20-e-poucos anos passam por mim - sujeitos suspeitos, em outra situação poderia atravessar a rua, mas é complicado quando não existe um sinal e a via é de alta velocidade - com bicicletas, camisetas de marca, tênis idem, cuecas da Zorba. Me pergunto: serão compradas com mesada do papai ou adquiridas com armas do titio-da-esquina? Bem, eles não me fizeram nada: nem pedras, nem cuspe, nem choro, nem vela, mesmo parecendo uma dupla de skinheads com pretensões de acabar com a baderneira que alimenta as tão-peturbadas consciências universitárias.

Meio-dia e quatro: Suspeitas infundadas. Como é bom o poder de acreditar na bondade alheia (leia-se: não agressão a transeuntes costumeiros): os pássaros voam, os sinos tocam, a vida se renova, Kill Bill ainda está em cartaz. -- um carro com auto-falante [oh, rezando pela cartilha do consumismo... diga não, pela sua salvação etc.] passa como sempre: estridentes, acompanhados por...

Meio-dia e cinco: ...um dos caras de bicicleta (o branco); ele voltou para [escolha melhor opção de resposta; lembre-se: estamos no estado do Rio e tudo de ruim associado ao dito deverá ser considerado]: a) arrancar de mim bens materiais conquistados com muito suor: implorar perante à família = forma de trabalho; b) perguntar as horas; c) comentar: "olha a bundinha deliciosa da muié da frente". Honestamente, até eu estou cansado desse brincadeira; falemos sério. Assim que ele me aborda (logo atrás de mim, afinal, deu meia-volta, volver), começa a falar, quase balbuciar devido ao auto-falante do veículo, expressões meio desconexas, mas que fazem um sentido aterrador quando somadas matematicamente. "Volume no bolso" e "faca na espinha"; eu penso: "uau, esse cara tem instrução, volume? Jesus!" mas minha ação é imediata: entregar o celular (do meu irmão, nunca gostei de andar com o aparelho, muito chamativo para quem o guarda no bolso da calça/bermuda). Logo depois, o fdp pede $$, só tinha 4 reais no bolso - para a passagem, aí sim, fiquei com medo (tudo aconteceu de maneira tão imprevista, eu não vi o rosto dele diretamente e, melhor, não senti nenhuma faca/arma-de-verdade/arma-de-brinquedo em mim) justamente porque o dinheiro era insuficiente para esses casos, ou pelo menos, pensava ser (ilustração: papai, um dia, me disse para colocar na carteira 5 reais; não precisava de nada na ocasião [...faz o ladrão] então perguntei a razão, ele retrucou: "em caso de assalto..."). Deu tudo certo: não fui seqüestrado, jogado ao mar, nem mutilado ou suicidado.


Fade-in... 5 Dias Depois ...Fade-out


Logo no dia seguinte (30/04), fui a delegacia do centro de Niterói para registrar ocorrência (tive aula em um bairro perto de lá, nesse dia), não na (vã) esperança de reencontrar aquela bugiganga movida a cartão e paciência, nem reembolsar meus 4 reais (isso me lembra Adam Sandler em blah-blah-blah, questionando uma forma a fim de retornar os 500 dólares extorquidos do mesmo) mas sim, caso o fdp tenha usado para fins não muito institucionalizados, e quem sabe, o celular é apreendido em uma daquelas esparsas buscas policiais e o nome do meu irmão registrado venha a tona, desencadeando uma dor de cabeça monumental? Bem, andar no centro da cidade é uma tarefa complicada. Não pela distância (relativamente perto) mas pelos obstáculos (mendigos, mesinhas de bar, camelôs, revistas expostas fora da banca e principalmente, pessoas distribuindo [quase jogando] pequenos folhetos [carteado + amor, esquema Fininvest: chegou, pediu, levou] para nós, pedestres e pobres coletores de lixo urbano). Chego lá e descubro que não posso dar ocorrência porque não tinha o número do registro operacional do aparelho ou algo assim. Passa o fim-de-semana (vi o novo filme com Sandler - Como Se Fosse a Primeira Vez, ou como eu prefiro: Primeiro Beijo ad infinitum -, como sempre, ótimo) e me desloco até a "Delegacia Legal" de Icaraí (esse "Legal" surgiu durante um surto de novas dp's, uma forma de aproximar a denúncia do fortalecimento do sentimento comunitário: "entregue o assassino, ganhe a recompensa e assista a morte de toda a sua família no dia seguinte de camarote, vista panorâmica" etc.) e lá consigo realizar a façanha, através de um depoimento altamente impessoal de minha parte misturado com a pose amplamente mal-humorada ("Legal", não seria?) do meu ouvinte. Ele ficou claramente desapontado quando somente afirmei que o fdp era branco, usava boné e tinha de 20 a 25 anos; no registro impresso, ele escreveu: "...que não reconheceu o autor [anteriormente, se refere ao mesmo como "elemento"] do fato e não tem como fornecer elementos suficientes para a confecção [uhuuu...] do retrato falado". Ou seja, não servi para nada... como se houvesse maiores mobilizações daquela força ociosa caso eu entregasse a identidade, comprovante de residência e CPF do fdp...


Pronto, já preencheu sua cota diária de violência e sodomia? Não? Ah, porque tem aquele caso do estupro seguido de etc.

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